Ali onde aperta o sapato
É interessante notar que cada idioma tem suas próprias necessidades — ou seja, as diferenças que são importantes para uma língua podem parecer supérfluas para outra
A pergunta vem de Horst P., de Gramado: "Salve,
professor! Já aprendi na sua coluna que não existe um dicionário que contenha
todas as palavras da nossa língua, e por isso venho consultar o senhor. Numa
reportagem sobre o Mr. Bean, aquele sujeito gozado da televisão inglesa, o/a
jornalista (só pelo nome, que era Juraci, não dá para saber se é ele ou ela)
descreve o personagem como "desajeitado, trapalhão e maniático",
palavra que não encontrei no dicionário que consultei. Daí a minha dúvida: até
pode ser que ela faça parte do grupo das que ainda não foram registradas, mas
não consigo perceber a utilidade de criar um termo novo quando temos o já tão
conhecido maníaco, que diz exatamente a mesma coisa".
Realmente, caro Horst, os dois vocábulos são muito
parecidos, irmãos muito próximos nascidos da mesma mãe grega, o substantivo
mania, nome dado a uma divindade secundária que encarnava a insânia ou a
loucura. Presente desde muito cedo nos tratados de Medicina, a palavra mania e
seu derivado maníaco foram usados, durante muito tempo, apenas no campo das
doenças da mente. Fala-se em psicose maníaco-depressiva e internamos os
maníacos no manicômio.
Até o séc. 19 os nossos antepassados consideravam as manias
como um problema médico. Foi pelas manias que o implacável Simão Bacamarte, na
novela O Alienista, de Machado de Assis, acabou lotando a Casa Verde com os
habitantes da pequena Itaguaí. O dicionário de Bluteau, do séc. 18, definia
pitorescamente a mania como uma doença que ia de um "delírio furioso, com
ira e atrevimento, mas sem frio nem febre" até uma simples "louquice
melancólica".
Com o tempo, contudo, mania saiu do vocabulário
exclusivamente científico e assumiu na linguagem corrente um significado mais
inocente, passando a denominar tanto (1) aqueles hábitos que fogem um pouco do
usual, ou (2) as simples preferências pessoais, como "a mania de só entrar
no estádio depois que o jogo começou", "a mania de ler o jornal do
fim para o começo", "a mania de comer feijão com açúcar". A
mesma tendência foi seguida por seu derivado maníaco, adjetivo que tornou-se,
no Português coloquial, a forma preferida de dizer que se gosta muito de alguma
coisa: ela era maníaca por boleros, ele é maníaco por pescaria.
Maniático é um recém-chegado (no Espanhol já é palavra
velha) que vem estabelecer uma útil nuança semântica: maniático é aquele que é
cheio de manias, ou, como dizia minha avó, cheio de nove horas. Para quem
conhece o atrapalhado Mr. Bean, não há dúvida de que chamá-lo de maniático é
muito mais preciso do que chamá-lo de maníaco. Afinal, essa necessidade de
estabelecer diferenças úteis é uma das mais poderosas fontes de criação de
novos vocábulos.
É interessante notar que cada idioma tem suas próprias necessidades — ou seja, as diferenças que são importantes para uma língua podem parecer supérfluas para outra. Por exemplo, para o nosso substantivo carne o Inglês tem meat (a carne que se come) e flesh (o corpo, por oposição ao espírito); um falante do Inglês que aprendeu a nossa língua vai ter de recorrer ao contexto para entender qual é o significado pretendido com a expressão os prazeres da carne... Nosso peixe pode ser pez ou pescado, em Espanhol; para eles, o primeiro vive na água e o segundo vai para a frigideira...
Se eu
preciso de tinta, em Inglês vai ser paint (se for para as paredes) ou ink (se
for para a caneta). Para eles, o aborto voluntário é abortion, enquanto o
aborto espontâneo é miscarriage. O aniversário, para eles, é birthday (como diz
a musiquinha Happy Birthday), mas aniversary, se for o aniversário de casamento
ou de fundação de uma cidade. E o leitor perguntará: por que uns idiomas dão
importância a detalhes que outros desdenham? Não sei bem ao certo, mas sinto
que aqui, como em muitas outras coisas, cada um sabe muito bem onde lhe aperta
o sapato.
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