quarta-feira, 7 de dezembro de 2011


Antonio Prata

Expiar

Eu, nascido e criado em apartamento, jamais havia presenciado a morte de um passarinho. Então é assim?

Estava trabalhando na varanda, com o laptop no colo, quando ouvi a batida, leve e abafada, no jardim. Olhei para frente ainda a tempo de ver o pequeno borrão quicando na grama. Demorei um pouco para entender do que se tratava: um passarinho, recém-caído do céu, agora jazia inerte, a dois metros de mim. Morto?

Eu, nascido e criado em apartamento, jamais havia presenciado a morte de um passarinho. Então é assim? Uma bela tarde, está ele lá, voando, minhocando suas caraminholas e, ploft!, despenca das nuvens?

Não deixa de ser poético. Sempre discordei desse povo que torce para morrer dormindo. Quando a indesejada das gentes chegar, também quero ser pego em pleno voo; aos 124, claro, mas bem desperto, para poder olhar ao redor uma última vez, dizer "ah, então era isso?", encarar a estraga-prazeres de frente, mostrar-lhe a língua e, enfim, deixar de existir.

Um movimento na grama, contudo, sugeriu-me que ainda era cedo para as funestas divagações: o pássaro não estava morto.

Com dificuldade, ergueu-se e assim quedou-se, petrificado. Da minha cadeira, vi seu coração pulsando, aflito como as últimas voltas do peão, e em seus olhos reconheci o desespero mudo do afogado, que sabe que chegou até a praia, mas que dali não sairá. Levantei-me, com cuidado para não assustar o bicho, e fui até ele. Nem se mexeu. Mais alguns suspiros e já era, pensei, consternado.

Passarinhos são os padroeiros dos cronistas. Machado de Assis comparou o folhetinista ao colibri, "que salta, esvoaça, tremula (...) e espaneja-se sobre todos os caules suculentos".

O primeiro livro de Rubem Braga foi "O Conde e o Passarinho". O último do meu querido Humberto Werneck chama-se "O Espalhador de Passarinhos". Fer-nando Sabino tem uma crônica antológica sobre o sabiá. "Bichos do Sítio", um dos lindos textos do recém-lançado "Certos Homens", do Ivan Ângelo, começa com um urubu e termina com uma galinha. (Passarões, é verdade, mas pássaros, mesmo assim.)

O mínimo, portanto, que eu podia fazer pelo nobre colega era proporcionar alguma dignidade a seus derradeiros instantes. Pensei em botar um Chet Baker no iTunes, mas me pareceu exagerado. (Além do mais, vai saber de seus gostos musicais? Imagino não haver nada pior, na hora da morte, do que uma trilha sonora equivocada.) Contentei-me em trazer-lhe um pires com água fresca. (Não sei por que, mas me veio a ideia de que morrer dá uma sede danada.)

Por 15 minutos, ficamos ali, frente a frente. Um quarto de hora durante o qual ele não moveu, literalmente, uma pena.

Então, como se fosse a coisa mais natural desse mundo, chacoalhou a cabeça, gingou com o pescoço no melhor estilo Axl Rose, deu um salto de 180º e saiu voando -não sem antes deixar sobre o pires um sinal inconteste de vitalidade e, sobretudo, de humor: um cocô, um belo, alvinegro cocô de passarinho, pintura abstrata, teste de Rorschach onde vi estampada a minha ignorância: sobre a morte, sobre a vida e, acima de tudo, sobre passarinhos.

Voltei à poltrona, pus o laptop no colo e retomei minhas pedestres escrevinhações.

antonioprata.folha@uol.com.br - @antonioprata

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