terça-feira, 27 de dezembro de 2011



27 de dezembro de 2011 | N° 16929
CLÁUDIO MORENO


Assim somos nós

Na Itália, no Renascimento, a ligação comercial com terras mais longínquas despertou também a curiosidade pelos animais que viviam nos outros cantos do globo. As famílias de renome, que já mantinham em sua corte um séquito de pintores, artistas e saltimbancos, passaram também a demonstrar seu poder e prestígio com grandes coleções de espécimes raros e valiosos.

Além de apurados plantéis de cavalos, cães e falcões de caça, formaram-se zoológicos particulares que incluíam o leão, a zebra e a girafa, até então raríssimos na Europa. Um desses senhores, por exemplo, orgulhava-se de sua rica coleção de leopardos, provindos dos mais variados pontos do Oriente...

Não faltaram, é claro, os que se dedicaram a formar verdadeiros zoológicos humanos. O famoso cardeal Hipólito Medici, por exemplo, exibia uma coleção de bárbaros que falavam mais de vinte idiomas diferentes, todos eles escolhidos entre os melhores representantes de seu povo: além de incomparáveis ginetes mouros, do norte da África, havia arqueiros tártaros, lutadores etíopes, mergulhadores indianos e turcos caçadores, que sempre acompanhavam o cardeal em suas expedições.

Quando faleceu prematuramente, em 1535 – é Jacob Burckhardt quem conta, em A Cultura do Renascimento na Itália –, seu caixão foi levado nos ombros por este bando esquisito, que misturava a algaravia de suas vozes às lamentações do cortejo fúnebre.

Essa exaltação da diferença entre os tipos humanos – que sempre serviu, em todas as épocas, para argumentos racistas – veio perdendo força desde o séc. 18, quando se proclamou que a Humanidade, embora múltipla, é sempre uma só. A não ser por fanatismo delirante, hoje ninguém ousaria negar que os homens – afegãos ou japoneses, esquimós ou argentinos – sejam iguais uns aos outros.

Por outro lado – e talvez por consequência – começamos a compreender que aquilo que torna infinita a variedade do zoológico humano é a possibilidade de cada um ser múltiplo em si mesmo.

Isaac Singer, um dos autores preferidos de nosso Moacyr Scliar, contava a história de um homem que, ao voltar de uma viagem a Vilna, comentou com um amigo que os judeus deviam ser um povo notável, pois tinha visto um judeu que, da manhã à noitinha, dedicava-se aos ensinamentos do Talmude;

um judeu que, durante o dia inteiro, só pensava em como poderia enriquecer; um judeu que agitava o tempo todo a bandeira da revolução, clamando contra a injustiça; um judeu que corria atrás de qualquer rabo de saia que passasse – ao que o amigo replicou: “Por que a surpresa? Afinal, Vilna é uma cidade grande, onde vivem judeus de todos os tipos”.

“Mas não”, disse o primeiro, “estou falando do mesmo judeu”. Pois é: assim somos todos; assim é cada um de nós.

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