quinta-feira, 22 de dezembro de 2011



22 de dezembro de 2011 | N° 16925
LETICIA WIERZCHOWSKI


A casa azul

Certas coisas não acabam dentro da gente. A minha casa de verão, por exemplo. Passaram os anos e há muito ela se foi – antes que a derrubassem, foi vendida, outros viveram sob o seu teto os dias de um fevereiro qualquer, sem que eu nunca ousasse voltar até lá...

A casa, os donos novos botaram abaixo um belo dia: carpinteiros derrubaram as paredes que acolheram a minha infância, o quarto com os beliches, a varanda onde tantas vezes esperei passar o primeiro menino dos meus olhos, o porão onde guardava-se a manteiga no tempo da avó e onde eu acreditei que vivia uma bruxa – o fim de cada uma dessas coisas foi planejado e executado sem dó, já faz bastante tempo.

No entanto, essa casa azul continua em mim. Com ela sonho por noites seguidas, anos a fio – como sonhei ainda ontem, acordando dentro dela hoje pela manhã... Nessa casa azul penso quando recordo a minha infância; se fecho os olhos, reencontro em mim o toque, o som e o cheiro de cada coisa: o áspero da madeira das paredes, o odor de mofo dos armários quando chegávamos para o verão, o barulhinho das janelas se abrindo para a manhã...

Eu posso pegar a louça entre as minhas mãos, os copos, as xícaras, os pratos, eu sinto o cheiro da uva espremida para o suco e o gosto da limonada que a mãe servia na grande jarra azul dos almoços; eu posso sentar à mesa e entrar no quarto dos hóspedes; sob meus pés, ainda sinto o toque aveludado da madeira da varanda (era uma casa sobre pilotis, talvez porque naquelas paragens a areia vinha e tomava conta de tudo num único inverno).

Vive em mim, essa casa – e vive na minha ficção. Meu avô segurou nas suas mãos os tijolos daquelas paredes, e o seu riso forte ainda ecoa naquelas sala, nesse país imaginário, nessa praiazinha ventosa de sonhos que a casa habita até hoje.

Passado o Natal, íamos para lá. Era uma regra adorada: arrumar as malas, os presentes recém-recebidos, e tomar a estrada para o Litoral. Foi a casa da minha infância, a casa eleita pelos meus sonhos. E hoje, ao acordar pensando nela, abri um livro da Sophia de Mello Breyner e meus olhos leram, assim de chofre:

“A antiga casa que os ventos rodearam, com suas noites de espanto e de prodígio, onde os anjos vermelhos batalharam (...), permanece presente como um reino, e atravessa meus sonhos como um rio”. Ah, casa azul... Aqueles dezembros há muito se perderam, mas eu ainda te navego.

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