sábado, 17 de dezembro de 2011



17 de dezembro de 2011 | N° 16920
CLÁUDIA LAITANO


O coração da beleza

O mais conhecido biógrafo brasileiro costuma dizer que biografado bom é biografado morto: “E não pode ser um morto recente, porque a morte transforma, de saída, qualquer um em santo. Eu diria que 10 anos de morte são o mínimo para que alguém se torne um biografável confiável”, ensina Ruy Castro.

Aproveitar o calor dos acontecimentos, porém, pode revelar-se uma mina de ouro. O livro mais vendido pela Amazon em 2011, por exemplo, foi uma biografia lançada menos de um mês depois da morte do personagem. Encomendado pelo próprio Steve Jobs ao biógrafo de Albert Einstein e Benjamin Franklin, o livro de Walter Isaacson não transformou o fundador da Apple exatamente em santo, mas com certeza ressente-se da falta de distanciamento.

Seguindo o raciocínio de Ruy Castro, é possível que o biógrafo mais temerário não seja aquele que aceita a encomenda de um empresário narcisista às portas da morte, mas o que se lança na investigação da vida de um personagem que não apenas ainda está vivo, mas recluso e pouco disposto a colaborar com biógrafos ou com o senso comum.

Foi o que fez o jornalista alemão Marc Fischer, autor de Ho-ba-la-lá – À Procura de João Gilberto, lançada este mês no Brasil. Marc Fischer descobriu a música de João Gilberto na casa de amigos, no Japão, em meados dos anos 90.

Tornou-se desde então um fã obsessivo e diligente a ponto de decidir encontrar o ídolo pessoalmente – talvez ouvi-lo tocar Ho-ba-la-lá, sua canção preferida. Acabou escrevendo uma biografia bem pouco convencional, sob medida para um gênio com fama de excêntrico, de quem o mínimo que se diz é que conversa com gatos e uiva para a Lua. Em abril deste ano, Marc Fischer acrescentou mais um lance bizarro às anedotas sobre João Gilberto: uma semana antes de o livro ser lançado na Alemanha, o biógrafo cometeu suicídio. Tinha apenas 40 anos – e se ele conseguiu ou não encontrar João Gilberto você vai ter que ler o livro para descobrir.

Biografias de pessoas vivas, mesmo as tão pouco convencionais quanto Ho-ba-la-lá, sempre correm o risco de deixar algum episódio decisivo de fora, um fato novo que lança uma nova luz sobre tudo que veio antes. Talvez tenha acontecido isso agora com João Gilberto.

Os ingressos encalhados, a falta de patrocínio e o recente cancelamento da temporada de shows que comemoraria seus 80 anos acrescentaram uma nota dissonante a uma vida já tão mítica que parecia pairar acima de banalidades cotidianas como preços de ingressos e custos de produção.

O gênio excêntrico que tornou-se o artista brasileiro mais reverenciado no Exterior, o enigma que de tempos em tempos algum jornalista ou escritor estrangeiro decide decifrar simplesmente não encontrou no Brasil plateias e patrocinadores dispostos a pagar o preço que ele pedia para voltar aos palcos.

Marc Fischer diz em seu livro que João é o coração da Bossa Nova, e que a Bossa Nova “é o coração da beleza”. Se tivesse vivido até o final de 2011, o autor talvez se surpreendesse ao descobrir com que facilidade o Brasil aceitou se desencontrar da beleza – enquanto tantas pessoas seriam capazes de atravessar o mundo para chegar perto dela ao menos uma vez.

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