quinta-feira, 29 de dezembro de 2011


Clóvis Rossi

Um nome sem peça de reposição

Teorias conspiratórias são ridículas, mas o risco de um vazio de governabilidade sem Cristina Kirchner é real

Quando cobria a agonia do presidente Tancredo Neves no Incor, em 1985, fui procurado por um cidadão que exibia dezenas de credenciais e cartões de visita, disposto a provar que o presidente havia sido alvejado com uma arma chamada Uirapuru, que disparava vírus e conseguia driblar eventuais obstáculos entre ela e o alvo.

Foi apenas uma entre mil teorias conspiratórias que apareceram à época. Doenças de governantes são território livre para o surgimento desse tipo de teses.

Não me espanta, pois, que a sucessão de tumores malignos que afetaram presidentes e um ex-presidente nos últimos meses tenha dado margem a um cúmulo de rumores nas redes sociais, ainda mais que todos os atingidos são personalidades de esquerda ou do que se pode chamar de esquerda no mundo contemporâneo.

Era também de esperar que Hugo Chávez surgisse com a teoria de que a CIA anda disparando cânceres contra os "anti-imperialistas" da região. Seria no mínimo ineficaz porque governantes de esquerda se tratam nos melhores hospitais que a burguesia construiu e equipou, exceto o próprio Chávez, que preferiu entregar-se aos cubanos.

Como sou o inimigo número 1 das teorias conspiratórias, abandono esses devaneios, sem dúvida mais populares, digamos assim, para cuidar da realidade. Ou seja, das previsíveis consequências do câncer da presidente Cristina Fernández de Kirchner.

É óbvio que tudo dependerá da evolução da doença e do tratamento. Se for positiva, aumentará ainda mais o já elevado cacife político e popular da presidente.

Basta lembrar que ela recuperou o prestígio, até então em queda, a partir do momento em que houve disseminada percepção de que seu marido Néstor morrera porque se descuidara da saúde em nome da causa.

O que é até verdade, goste-se ou não da causa. É natural, portanto, que uma Cristina vencedora do câncer ganhe pontos com o público pelo mesmo motivo, como já o indica a carta de apoio à "morocha" (a morena presidente) de Hebe de Bonafini, das Madres de Plaza de Mayo.

Essa é a parte fácil de prever. Assustadora é a hipótese inversa, a de problemas que afetem a capacidade de governar de Cristina.

O sociólogo Ricardo Sidicaro, pesquisador do Conicet (Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas), definiu o governo dos Kirchner, em artigo para a revista "Nueva Sociedad", como "governo de líder sem partido". Logo, se o governo que já não tem partido ficar também sem líder, a Argentina estará com um sério problema de governabilidade.

Já o também sociólogo Julio Burdman, em texto para o site "Infolatam", lembra que, no modelo presidencialista latino-americano, "o presidente é o verdadeiro receptor dos votos e, como tal, é quem encarna as demandas, os planos de governo e o espírito das épocas políticas". O "kirchnerismo", com Néstor ou com Cristina, é isso e não tem peça de reposição.

Por fim, cabe lembrar que o casal foi o responsável por tirar a Argentina do poço (político, econômico e social) em que mergulhara até o ano 2001. Não é pouco, o que só aumenta o tamanho do problema no caso de doença séria.

crossi@uol.com.br

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