terça-feira, 20 de dezembro de 2011



20 de dezembro de 2011 | N° 16923
DAVID COIMBRA


Por um grito de dignidade

Lembro de quando li o livro de Howard Fast sobre o escravo gladiador Espártaco. Fiquei muito envolvido pelo romance. Durante dias experimentei as sensações que a história passava: o sentimento de que o ser humano está sempre sendo oprimido pelos outros seres humanos, de que a liberdade individual e a dignidade do homem são bens que fazem a luta valer a pena, mesmo quando se é derrotado.

Mais ou menos na mesma época assisti ao filme que Stanley Kubrick realizou baseado, exatamente, no romance de Howard Fast. O filme não me decepcionou. Ao contrário, lá estava um Espártaco enérgico vivido por Kirk Douglas, lá estavam Tony Curtis, Peter Ustinov e outros grandes do cinema, entre eles “sir” Laurence Olivier interpretando Crasso, o general que enfim derrota o escravo rebelde e que, mais tarde, em um episódio não narrado pelo livro ou pelo filme, seria morto ao cometer um erro terrível, donde a expressão “erro crasso”.

As cenas finais do filme transmitem com genialidade essa ideia elevada de que as derrotas não são todas iguais. De que um homem pode ser amplamente batido, mas ainda assim continuar íntegro, reto e vertical graças à sua vontade indômita. Porque o exército de escravos fugidos de Espártaco já havia sido submetido por Crasso, e agora o general romano pretendia liquidar moralmente o líder da rebelião.

Matar Espártaco e trucidá-lo à vista de todos seria a vitória cabal sobre os escravos. Porque Espártaco, tendo liderado a sublevação dos servos, tendo derrotado cinco legiões romanas em sucessão, tendo posto em pânico os cidadãos da Cidade Eterna, era, ele próprio, um símbolo incômodo de liberdade. Ou de ânsia de liberdade, o que é ainda mais poderoso. O império precisava acabar com ele e com tudo o que representava.

Então Crasso, ou sir Laurence Olivier, chega à frente de seus legionários ao local onde estão os prisioneiros de guerra, e eles estão rojados ao chão, abatidos, andrajosos, feridos e humilhados. Tinha, Crasso, de identificar Espártaco para exterminá-lo de vez.

O oficial que o ladeia anuncia-lhe a presença, avisa que o general está buscando Espártaco e adverte que, se o líder não for entregue, todos os cativos serão crucificados. Espártaco, ou Kirk Douglas, olha desanimado. Sabe que é seu fim. Está acorrentado a outro escravo, vivido por Tony Curtis. Prepara-se para se levantar e identificar-se, mas Curtis ergue-se antes dele e grita, para sua surpresa:

– Eu sou Espártaco!

O verdadeiro Espártaco vai protestar, mas, lá atrás, outro escravo se põe de pé e lança o brado:

– Eu sou Espártaco!

E outro ao lado também se levanta:

– Eu sou Espártaco!

E logo todos os escravos estão repetindo:

– Eu sou Espártaco! Eu sou Espártaco! Eu sou Espártaco!

Crasso observa, impotente, do alto do seu cavalo e da autoridade de Roma, enquanto uma lágrima rola pelo rosto duro do escravo que, na derrota final, obteve sua maior vitória. A cena imortal tem um significado que ultrapassa os limites do filme e da história: todos ali eram Espártaco, e todos somos, em algum momento da vida: oprimidos, sim; submetidos, talvez; vez em quando até humilhados; mas isso não importa, desde que estejamos inteiros, desde que tenhamos tentado, desde que, mesmo diante da crucificação iminente, possamos ter emitido um último grito de liberdade:

– Eu sou Espártaco!

É assim que se perde, e não como perdeu o Santos no último domingo, no Japão. Os jogadores do Santos não demonstraram um laivo de indignação, de hombridade ou de insubmissão pelo que lhes era imposto. Aceitaram passivos o domínio das forças superiores do Barcelona. Foram seviciados sem um grito, sem um protesto, quase com alegria. Nem sequer falta cometiam, assistiam ao adversário jogar, entregues e reverenciais.

Um jogador de futebol não precisa dar pontapé para interromper uma jogada com falta. Pode interpor o corpo ao adversário, pode dar um ombraço, um golpe de ilhargas, pode até jogar-se aos pés dele. Mas não pode ser uma bandeirante omissa como foram os milionários jogadores do Santos no domingo.

Foi ridículo.

E mais ridículo ainda foi como se comportou a torcida nas arquibancadas, gritando o nome do clube sem parar, como se lá embaixo, na arena, não estivesse se desenrolando aquele espetáculo constrangedor. O que saudavam os torcedores do Santos?

O salário nababesco do seu técnico emburrado ou o do seu atacante de cabelo arrepiado? Eram essas as únicas valências do Santos. Ali não havia ninguém com uma réstia de indignação na alma, ninguém capaz de se rebelar, ninguém que ousasse enfrentar o destino, erguer-se dos escombros da derrota e gritar, como um homem:

– Eu sou Espártaco!

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