domingo, 25 de dezembro de 2011


Janio de Freitas

Lembrança quase natalina

A velhinha parecia estar com frio, braços muito próximos do peito, apertando-se na roupinha surrada

Era um prazer triste. Em partes sempre desiguais. E nunca favorecendo a primeira. Não diria que fosse frequente, mas não posso imaginar quantas vezes, no andar pela cidade, o encontro com crianças relegadas e velhinhos arruinados me mudou o caminho. E me trouxe surpresas, emoções confusas, e quase sempre apenas o prazer triste de entregar a um deles o que me parecera ser uma necessidade ou um desejo seu.

Nada a ver com caridade religiosa, associações de incerta benemerência, ou coisa parecida. Uma dor difusa, talvez um tanto raivosa, um impulso, e pronto. E, é claro, altas doses do que vem de longe, fazendo nossos voos e nossos tombos, e o que parece, mas não são, escolhas. Ou, para simplificar, "está na genética".

Minha família tinha os "seus pobres", que ao fim de cada mês iam receber a mesadinha; outros, alguns alimentos, roupa aproveitável, remédios para as crianças. O final do ano era especial. Uma tia autora de rádio-teatro da Mayrink Veiga, que era o grande sucesso antecessor da Rádio Nacional, realizava o Natal dos Pobres. Com o auxílio da rádio, a coleta era farta. A família passava semanas enchendo grandes sacolas individuais, distribuídas em evento concorridíssimo.

Na tarde do Natal, a pequena caravana familiar ia a orfanatos ou a ambulatórios de crianças, levar brinquedos e tentar diverti-las um pouco. Hoje há grupos que fazem isso como organizações.

Em um Natal daqueles, dei comigo, atônito, devastado, na enfermaria de crianças com hidrocefalia. Os corpos pequenos, do tamanho do meu, e as cabeças enormes e disformes, alguns sentados nas camas, outros deitados, incapazes de sustentar o peso da cabeça. Os dois a quem me coube entregar brinquedos e com eles brincar, entre as duas camas, são rostos que não esqueci nunca. Rostos pequeninos nas grandes cabeças, sorridentes em uma alegria de inocência, assim ainda me acompanham. E me doem, e me comovem.

Não soube, nem entenderia, se tinham tratamento, se havia cirurgia. Ou se apenas esperavam.

Minha série individual foi amena, também com a esperável fartura de inesperados, mas todos inofensivos. Mal me lembro de um ou de outro, a menos que o acaso me provoque.

Deu-se um hoje. Olhava uma lista de livros relançados, e algum deles me lembrou a livraria que frequentei muito, na Miguel Couto, bem perto da redação, centro do Rio. E me voltou a imagem da velhinha, bem fechadinha sobre si mesma, na calçada perto da livraria, sempre vendendo esferográficas, que tinha erguidas entre dedos: uma azul, uma vermelha, uma preta.

A velhinha me parecia estar sempre com frio, braços muito próximos do peito, apertando-se na roupinha surrada. Um dia entreguei a ela uma sacola de loja, um embrulho dentro. Olhou séria: "O que é?"

"Um agasalho pra senhora não sentir mais frio."

Comecei a me afastar e ela me chamou: "Moço, moço." Virei. "Posso vender?"

Dei uma vacilada. "Bem, se a senhora quiser, pode."

Acho que, constrangido com minha gafe, sumi um pouco dali. Quando voltei a ir à Padrão, certa vez dou com a velhinha -e o agasalho. Fui a ela: "A senhora desistiu de vender o casaco?"

"Vender o casaco? Se eu vender pro senhor eu vou ficar com frio. Velho sente muito frio, sabe? O senhor não quer comprar uma canetinha?"

Hoje em dia meus impulsos não existem mais. Vou muito pouco ao centro da cidade, e é raro andar pelas ruas das redondezas. Apenas espero. [Viva, com sua família, um Natal alegre

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