segunda-feira, 2 de maio de 2011



02 de maio de 2011 | N° 16688
L. F. VERISSIMO


Posteridades

Albert Camus visitou Nova York e escreveu sobre suas emoções e perplexidades na cidade grande. Uma cidade, segundo ele, em que você poderia se perder para sempre, mas que ele acabou amando. Não sei se Camus viu mesmo a frase num anúncio de funerária ou se a inventou, para dar uma ideia do espírito e da estranheza do lugar, mas a frase é ótima: “Morra, e deixe o resto por nossa conta”. O único trabalho de um cliente de funerária é mesmo morrer, todo o resto, inclusive sua posteridade, não depende mais dele.

Eu só queria reproduzir a frase, mas já que começamos com Camus e a posteridade, entremos num assunto sobre o qual ele também opinou bastante, a relação dos intelectuais com a política e o poder. Camus e Sartre foram dois exemplos de intelectuais engajados, Sartre um pouco mais do que ele.

Engajaram-se na boa causa da resistência ao nazismo, divergiram em outras questões em que o inimigo não era tão claro. Nenhum dos dois – a não ser que você lamente que Sartre nem sempre tenha medido suas adesões radicais – tem do que se arrepender, na posteridade. Outros não podem dizer o mesmo.

O fascismo teve muitos admiradores entre os intelectuais, inclusive no Brasil. Heidegger, Ezra Pound e Celine são apenas os mais notórios apologistas do nazismo, mas a lista é longa. E é longa a tradição de pensadores, criadores e filósofos que, por convicção ou distração, deram-se mal nas suas incursões políticas.

Uma resenha que li recentemente de um livro chamado Examined lives – From Sócrates to Nietzsche enumera alguns dos iludidos da história. Platão achou que tinha descoberto o executor ideal da sua receita para uma república de filósofos em Dionísio de Siracusa, que se revelou um tirano.

Aristóteles meteu-se com Felipe II, que tinha alguns genocídios na sua folha corrida, e foi o mentor intelectual de Alexandre, seu filho, que também tinha o gosto por matanças. Quando Alexandre morreu, Aristóteles fugiu de Atenas, alegando, não sei se ironicamente, que queria poupar a cidade que já obrigara Sócrates e tomar cicuta do vexame de matar mais um filósofo.

Em Roma, Sêneca tornou-se o filósofo da corte. Nada demais, se o imperador não fosse o pirotécnico Nero. Quando Sêneca se deu conta de onde estava metido e tentou sair, Nero acusou-o de traição e o mandou matar. E nem Santo Agostinho escapou de uma mancha na sua posteridade. Quando chegou a bispo, comandou a destruição de templos pagãos e a repressão brutal de não cristãos.

Mas, enfim, como no anúncio da funerária nova-iorquina anotado ou imaginado por Camus, todos eles já morreram, e nada do resto era da sua conta.

Esclarecimento – Na crônica de Verissimo na quinta-feira passada, que reproduz diálogo em engarrafamento em que os personagens comparam os governos Lula e FH, por um erro de edição faltou o trecho final, reproduzido abaixo:

– Por quê?

– Porque um é um e o outro é outro, e eu prefiro o outro.

– Então você não acha que Lula foi irrelevante e só continuou o que o Fernando Henrique começou, como dizem os que defendem o Fernando Henrique?

– Acho, mas...

Nesse momento o trânsito começou a andar e o diálogo acabou.

Nenhum comentário: