segunda-feira, 8 de novembro de 2010



08 de novembro de 2010 | N° 16513
LUIZ ANTONIO DE ASSIS BRASIL


Lars von Trier

Os novidadeiros podem achar estranho; mas há pessoas diferentes, a quem apetece ver filmes ou ler livros muito depois de lançados, à espera da passagem do tempo. Para estas, os best-sellers devem ser lidos com uma confortável margem de três a cinco anos. É uma posição tão discutível quanto respeitável.

O filme Anticristo, de Lars von Trier, causou polêmica no ano passado; em certo sentido, porém, está velho, na leveza efêmera de nossa época. Ótimo. Assim é possível julgá-lo com alguma isenção.

É um filme a que as nossas tias chamariam de “pesado”. Não há concessões ao bom gosto. Nem à ética. Nem ao politicamente correto. Não há concessões a nada. Lars von Trier fez o filme que achou que deveria fazer, e levou aplausos e vaias em Cannes; ao final da exibição, que muitos abandonaram em seu decorrer, um dos jornalistas presentes, irritado (ou fingindo que estava), gritou da plateia: “Mas diga-nos, Sr. von Trier, diga-nos por que fez este filme?”.

O que incomoda, em Anticristo, é a brutalidade, o sexo perverso, o gratuito da morte etc., mas o que incomoda mais é a perspectiva de uma natureza má, sinistra e devoradora. Eis o ponto. A natureza, desde as Éclogas, passando por Rousseau, a Sexta Sinfonia de Beethoven e chegando ao pós-moderno Partido Verde, quase sempre foi vista como uma espécie de paraíso.

Von Trier inverte essa perspectiva: os protagonistas, um casal que perde um filho num acidente doméstico, refugiam-se numa casa de descanso, em meio à mata. Este lugar chama-se, et pour cause, de Éden. Melhor chamá-lo de Infernus. Cada flor é uma ameaça, em cada ramo oculta-se um demônio metamorfoseado num animal inofensivo.

Apurando bem a sensibilidade, percebe-se que von Trier remete-nos a um período ancestral de crenças pagãs, em que o sagrado e o profano misturavam-se numa volúpia irresistível. É o irracionalismo em cena.

Em certo sentido, faz coro a toda uma literatura que invoca entidades transcendentais como demônios, gnomos, duentes, leprechauns, que pululam nas histórias populares e não só. Quer-se dizer: Anticristo não é nada mais do que um repassar de uma mitologia nefanda.

Agora: Anticristo é uma obra insuportavelmente bela, e se não a apoiasse uma rígida busca estética, ninguém falaria mais dela, depois de um ano. Isso faz pensar num possível caminho para a subsistência da arte – o que não é pouco.

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