quarta-feira, 3 de novembro de 2010



03 de novembro de 2010 | N° 16508
DAVID COIMBRA


A obra, a herança, o pai e a estrada

Se você for à Praça da Alfândega agora, depois que o ponto final desta página se lhe infiltrar retina adentro, você verá uma estátua equestre embrulhada em plástico preto. Muito estranho. Um pouco assustador. Mostrei-a para o meu filhinho Bernardo e, à noite, ele sonhou com aquilo.

Se você for à praça também verá, espalhadas ao redor do pedestal da estátua empacotada, as barraquinhas da Feira do Livro. Numa delas haverá de encontrar a “História da Literatura Ocidental”, de Otto Maria Carpeaux.

Esse livro eu o tenho em sete tomos encadernados em couro vermelho-escuro, coisa fina, mas existe mais em conta, da Gráfica do Senado. Esse livro não é um livro; é uma obra. Leia-a, por favor, e depois sinta que sua vida não é mais a mesma.

Agora: faz-se necessária alguma solenidade para submergir nesse livro. Abra um tinto chileno, refestele-se na sua poltrona mais confortável e sorva-o com deleite, ao livro, e com parcimônia, ao tinto.

Você terá outra missão, na Feira. Procure por “A Cidade Antiga”, que o francês Fustel de Coulanges escreveu no século 19. É um clássico que merece ser consumido com tanto critério quanto a obra de Carpeaux e o tinto do Chile.

Num texto elegante, com informações colhidas de fontes originais, Coulanges conta como a antiga religião dos povos gregos e itálicos influenciou nas instituições do Ocidente.

Por antiga religião entenda a mais antiga, anterior à de Zeus dos gregos e à de Júpiter dos romanos, antiga de um tempo em que os deuses eram privados, entidades veneradas por uma única família em cultos particulares, transmitidos de pai para filho.

Esses deuses eram os antepassados mortos da família, em geral enterrados sob o soalho da casa. A terra em que habitavam esses chamados “deuses-lares” também se tornava sagrada. Assim, a PROPRIEDADE se tornava sagrada. Aquela terra haveria de pertencer sempre à mesma família, transmitida do pai para o filho mais velho, ad eternum, porque só o filho homem poderia presidir ao culto aos mortos.

Eis o busílis: a herança cabia apenas ao filho primogênito. Por que isso? Porque a noção de paternidade havia sido modificada. Nos tempos primevos do nomadismo, os seres humanos atribuíam a reprodução somente à mãe. Não compreendiam qual era o papel do homem na concepção dos filhos.

Quando foi descoberto que o homem fecundava a mulher, os papéis se inverteram. Ao ponto de a mãe ser desclassificada para uma posição subalterna. Acreditava-se agora que a semente vinha do pai, ele é que transmitia as características ao filho, enquanto a mãe não passava de um receptáculo, uma estufa caminhante.

O filho e a propriedade herdada por ele satisfaziam o homem em duas de suas ânsias: a de acumulação de riquezas em vida e a da posteridade depois da morte. E a religião dava a justificativa moral para isso. Afinal, a razão alegada para que a terra se transformasse em propriedade era espiritual: havia um culto a ser preservado, o culto aos mortos que ainda viviam naquele pedaço de chão.

Complexo, sei, Coulanges escreveu um cartapácio para explicar isso tudo. Mas o que interessa, no caso, é o ardil empregado pelos antigos. Os homens usavam a religião para transformar um desejo material (a posse da terra) numa necessidade nobre (o culto aos deuses da família).

Assim é feito até hoje. As razões da alma e do coração são sempre alegadas para justificar as reivindicações da carne. Raro que aconteça o contrário, como no futebol. Aí as razões são todas da paixão, são subjetivas, intangíveis e, por isso mesmo, nobres.

O torcedor é um puro. O torcedor faz tudo pelo seu sentimento e só pelo seu sentimento. Pena que, na outra ponta, na ponta em que estão os profissionais, haja tanta gente usando essa paixão para justificar seus objetivos mundanos, mesquinhos, meramente materiais.

Finalmente, você tem outra obrigação na Feira, hoje: vá ao lançamento do livro em que eu e o Gilmar Fraga contamos a história da nossa heroína Jô. É o “Jô na Estrada”. Estaremos no pavilhão dos autógrafos a partir das 18h30min. Esperando por você.

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