sábado, 12 de setembro de 2009



13 de setembro de 2009
N° 16093 - PAULO SANT’ANA | INTERINO - MOISÉS MENDES


Os pianos

Uma gaita de boca de Bob Dylan vale R$ 8 mil? Se tivesse dinheiro, eu compraria. John Fellas, um eletricista inglês, pagou isso, em libras claro, num leilão esta semana. É uma gaitinha que Dylan usou numa turnê em 1974.

Eu compraria óculos escuros anos 70 do Bob Dylan. Compraria duas gaitas. Uma do Borghettinho, outra do Porca Véia, ou uma caneta do Drummond, um pé de sapato do Fred Astaire, uma peruca do Andy Warhol, uma chuteira torta do Garrincha, uma flauta do Plauto Cruz.

Faça sua lista do que você compraria, se tivesse grana sobrando, só para ter por perto um objeto com as digitais de uma figura de exceção. Eu só compraria objetos de alguém das artes, de qualquer arte – no máximo, de alguém da política, se fosse, só como exemplo, uma cadeira ou uma gravata do grande Alberto Pasqualini. Eram perfeitos os nós da gravata de Alberto Pasqualini. Não compraria nada que fosse tralha de guerra.

Pois, se tivesse dinheiro de sobra, eu compraria esses dois pianos que três meninos de Estrela iam buscar em Santa Rosa. Daniel Gabriel Diehl, de 20 anos, e Augusto Nicolao Gregory, de 18, compraram os pianos de uma escola por R$ 1,5 mil cada.

Saíram de Estrela de madrugada para buscar os pianos. Os dois e o amigo deles e motorista da van, Fernando Diersmann, de 25 anos, morreram no dia 2 na estrada entre Cruz Alta e Ijuí.

Os pianos ficaram sem as marcas de Daniel e Augusto, mas pra mim valem mais do que a gaita de boca do Bob Dylan de R$ 8 mil. Dylan deve ter centenas de gaitas que ainda poderão ser vendidas em leilões. Um espertalhão pode pôr uma chuteira a mofar e vender como se tivesse sido de Garrincha. Esses pianos são únicos.

Pensei, quando decidi escrever sobre os guris e os pianos, se não estaria submergindo na armadilha de tentar transformar uma tragédia numa história edificante. Vou me esforçar para que não seja. Que este seja apenas o texto de alguém que sente um ciúme bom de quem toca piano.

Pois três amigos pegam um carro de madrugada e vão atrás, não de uma bicicleta – o que já seria um bom motivo –, de uma bola de futebol, de uma moto ou da última versão do iPod. Vão buscar dois pianos.

Imaginei, quando li a notícia, o que esses rapazes devem ter tocado nos dois pianos enquanto esperavam o sono às vésperas da tal viagem. Tocaram Nazaré, Villa-Lobos, Chopin, uma valsa, ou brincaram de Thelonious Monk, o gênio do improviso, ou só passaram os dedos no teclado?

Os dois guris não compraram uma guitarra para impressionar as gurias, nem um acordeon para se exibir num bailão, o que também seria bem legal. Não é todo dia que dois guris do interior decidem, ao mesmo tempo, comprar dois pianos.

E saem atrás dos pianos, onde estiverem, até encontrá-los numa escola de Santa Rosa. Esses guris nos comovem porque nos devolveram aos sonhos mais loucos da infância e da adolescência.

Você deve ter o seu piano que nunca foi buscar, ou porque não teve dinheiro, ou porque fez outras escolhas. Os pianos vão ficando por aí, em algum canto, até se consumirem como o rosebud do Cidadão Kane, ou só vão reaparecer diante de nós quando já for tarde mais.

Se tivesse dinheiro, eu só não compraria esses pianos se estivessem com os pais dos guris. Se não estiverem, e se os pais não quiserem os pianos, alguém deve comprá-los. Um prefeito deve fazer a compra, em nome dos interesses do município e dos sonhos privados de cada um de nós.

Se eu fosse prefeito, compraria os pianos e faria um sorteio entre as escolas da cidade. Um piano numa escola. O outro piano eu deixaria num prédio em volta da praça, num local em que qualquer um que chegasse pudesse sentar e tocar.

Não seria para servir de exemplo, nem para tentar descobrir talentos, muito menos para descerrar placas de bronze com os nomes dos guris.

Seria só para libertar o som bonito que deve sair desses pianos. E se soubesse tocar, eu iria a Estrela para tocar o Amanecer do Chucho Valdés.

Nenhum comentário: