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sexta-feira, 18 de setembro de 2009
CARLOS HEITOR CONY
Rapsódia dos anos mais antigos
O duelo Ginger Rogers x São Luiz Gonzaga arrastou-se por algum tempo, com Ginger dando de goleada
ALGUNS EXCELENTES escribas em atividade, Ruy Castro, Arthur Xexéo, Joaquim Ferreira dos Santos e outros, já entrados em alguns anos de crônica e de mundo, volta e meia escrevem comoventes rapsódias aos tempos idos, sobretudo aos anos 30, 50 e 60 -datas que ficaram marcadas em suas mentes, corações e carnes.
Evocam uma idade de ouro, em que as escolas podiam não ser risonhas e francas, mas o mundo em geral, e em particular o cinema, eram não o paraíso perdido, mas a Babilônia reencontrada de Scott Fitzgerald, aberta aos sonhos e cobiças dos grandes Gatbsy que éramos todos.
Lembro um desses rapsodos, talvez o mais radical e, por isso mesmo, o mais desesperado. Chamava-se Salvyano Cavalcanti de Paiva II, o pai dele era o primeiro da dinastia e o filho ficou sendo o Salvyano III, uma linhagem como a dos papas e a dos reis.
Era potiguar e ao mesmo tempo nova-iorquino, californiano, texano e romano dos anos fellinianos. Numa edição dominical do jornal em que escrevia extensos e bem fundamentados artigos, deixou uma rapsódia ensinando-me a mim, "prisioneiro da teologia e do reacionarismo catolicão", as belezas da velha Galeria Cruzeiro, o encanto do "New Deal", as piadas das "Seleções", Josephine Baker cantando "J'ai deux amours", as pernas de Ginger Rogers.
As pernas de Ginger Rogers! Salvyano não sabe que, lá no Seminário, onde me refugiei das tentações do diabo, do mundo e da carne, tinha eu de me aferrar com unhas, dentes e rosários ao angélico São Luiz Gonzaga, padroeiro da castidade, para afugentar os maus pensamentos que me invadiam a alma quando ouvia, esporadicamente, num rádio vizinho, o "Cheek to Cheek", o "Isn't it a Lovely Day?" de "O Picolino", ou mesmo aquele inocente e triunfal "The Continental", de "A Alegre Divorciada".
Mas isso é problema meu e de São Luiz Gonzaga. O santo valeu-me em inúmeras oportunidades e hoje, com melhor perspectiva para julgar-me, tenho raiva do santo. Muitas vezes rezei até que decorei:
"Oh Luiz santo, adornado de angélicos costumes, eu indignissímo devoto vosso, vos recomendo a castidade da minha alma e do meu corpo. Não permitais que se implante em minha alma qualquer mancha de impureza; mas quando me virdes em tentação ou perigo de pecar, afastai para longe de mim os pensamentos imundos..."
O que tive de pensamentos imundos não foi mole -apesar da prestimosa intercessão do santo. O duelo Ginger Rogers x São Luiz Gonzaga arrastou-se por algum tempo, com eventuais vantagens para o santo, mas Ginger Rogers sempre dando de goleada.
Hoje, se se repetisse o duelo, São Luiz não teria de se medir com Ginger Rogers, mas teria pela frente a nutrida e confortável Scarlett Johansson ou a ainda confortável Demi Moore. Isso sem falar no plantel nacional, com suas Elviras Pagãs e Julianas Paes. Acredito que o santo tomaria um banho!
Por aí se pode ver que o agressivo saudosismo do Salvyano II e seus asseclas muito erraram ao enumerar o leite e o mel que corriam pela Canaã dos anos mais antigos do passado. Aos olhos deslumbrados do então adolescente e já sólido potiguar que aqui desembarcou nos meados dos anos 30, o Rio pareceu-lhe o paraíso do já citado Scott Fitzgerald.
Não vou citar Balzac, mas o Salvyano II já devia ter lido "Um Começo de Vida". Todo o provinciano, ao chegar à grande cidade, enamora-se dela e com ela firma um pacto de fidelidade eterna: jamais! O rapaz mantém-se, quase sempre, fiel ao pacto. Mas a cidade, essa se transforma, se prostitui, recebe novos rapazes e com eles firma novos e abomináveis pactos.
Não contente em trair, e amaldiçoadas pelos bíblicos profetas, as cidades terminam por maltratar o eleito da véspera, agredindo-o em suas lanchonetes desconfortáveis, em seus cinemas sem refrigeração, em suas ruas esburacadas, em suas enchentes de verão e em suas solidões de inverno.
Não estou aqui para aconselhar ninguém a imitar os profetas, sacudindo o pó de suas sandálias contra o Rio.
Salvyano era o único jornalista do Brasil que usava galochas. Sua rapsódia equivalia a um sacudir de sandálias não contra a cidade, mas contra o Tempo. E o Tempo é pior do que as cidades.
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