sábado, 19 de setembro de 2009



19 de setembro de 2009 | N° 16099
CLÁUDIA LAITANO


Becky Bloom e a crise

A crise financeira mundial estava no auge quando a despretensiosa comédia romântica Os Delírios de Consumo de Becky Bloom chegou aos cinemas americanos, em fevereiro deste ano.

Quase tudo no filme já havia sido visto antes (a fórmula das comédias românticas americanas não costuma ser muito flexível ou original), mas a história da mocinha descompensada que gastava muito mais do que podia e colecionava cartões de crédito estourados como sua avó colecionava papéis de carta acabou ganhando uma outra dimensão em meio ao ambiente de ressaca consumista que tomou conta dos Estados Unidos depois da quebradeira geral de bancos e empresas.

Por mais tola e inconsequente que Becky Bloom pudesse parecer, ela havia se tornado uma espécie de retrato da alma nacional: se Becky comprava roupas e sapatos que não podia pagar, o americano comum sonhava com casas de dois andares no subúrbio que estavam muito além de suas possibilidades financeiras reais.

Pouco depois de outra grande crise, a de 1929, estreava nos Estados Unidos um filme que, no Brasil, recebeu o título de A Felicidade não se Compra (1934), o que permite alguma espécie de paralelo com o mundo de Becky Bloom, em que os cartões de crédito compram quase tudo – o que, em si, já é a própria definição de felicidade para a personagem.

O mundo mudou muito entre o clássico de Frank Capra e a comédia açucarada em que Becky Bloom surgiu – ou entre a crise de 1929 e a crise de 2009. Nos anos 30, as vidas de quem tinha dinheiro e as de quem não tinha eram naturalmente diferentes, e o ditado “dinheiro não traz felicidade” servia para lembrar (ou fazer crer) que no lado em que não se comia caviar também era possível encontrar algum tipo de realização (em valores como família, amor, comunidade, tradição...).

O consumismo de Becky Bloom é produto de uma época em que já não é tão fácil encontrar valores comuns.

Essa lacuna, em muitos casos, tem sido preenchida por um dos poucos sinais universalmente reconhecidos como índice de sucesso pessoal: a capacidade de consumir. É por isso que tanto o garoto que não tem dinheiro para pegar ônibus quanto o que vai com motorista para a escola acabam sonhando com o mesmo par de tênis.

Na pior das hipóteses, o garoto pobre vai tentar roubar o menino rico, mas o verdadeiro problema talvez seja que ambos acreditam que o tênis confere a eles qualidades que definitivamente não estão ali: sedução, poder, sucesso etc.

Compro, logo existo, porque é o que eu compro/uso/aparento que me define e não mais a família de onde venho, os valores que preservo, a cultura com a qual eu me identifico. Becky Bloom precisa de sapatos novos como sua avó precisava de um marido.

Essa crise que, parece, já começa a virar história acabou tendo o inesperado efeito de alertar o mundo de que o consumo inconsequente não é ruim apenas para o planeta (como os ecologistas há anos vêm dizendo), mas também para a economia e, principalmente, para o bom senso.

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