segunda-feira, 28 de setembro de 2009



28 de setembro de 2009 | N° 16108
PAULO SANT’ANA


O cego e a motosserra

Eu uma vez já escrevi aqui sobre o cego Justimiano. Mas não abordei um aspecto que me parece interessante na cegueira.

O cego Justimiano foi um personagem da minha infância, ele morava oito ou nove casas além da minha, na Chácara das Bananeiras, no Partenon.

O cego Justimiano vivia sempre de pijama, nunca botava outro tipo de roupa, sempre de pijama listrado, não precisava de outra roupa, porque nunca saía de casa.

Quem alcançava as coisas para ele era dona Malvina, sua mulher havia 40 anos.

Mas o que me intrigava no cotidiano dele é que era um alcoólatra.

Bebia o cego Justimiano, mas só podia beber depois das seis da tarde. Era essa uma norma rígida que traçara dona Malvina: Justimiano só podia beber depois das seis da tarde.

Lembro-me que depois do meio-dia, de meia em meia hora, Justimiano perguntava as horas para Malvina. Cada um deles tinha mais de 60 anos.

Justimiano não cabia em si de ansioso, torcia para que chegassem as seis da tarde.

Quando batiam seis da tarde, Justimiano, o único cego da vizinhança, entrava em euforia.

Dona Malvina enchia de cachaça um vidro de Biotônico Fontoura e dava para Justimiano, que ia tomando aos goles poupados a aguardente pura. Afinal, sua quota máxima era de dois vidros.

Era uma forma de o cego Justimiano aliviar-se das pesadas cruzes da sua cegueira.

Quando entrava no segundo e último vidro de cachaça, o cego Justimiano ia para o quintal, cambaleando em cima dos seus tamancos.

Ficava debaixo de uma bergamoteira e ali cantava todo tipo de música, embora gostasse mais de trovar.

Era assim a rotina cansativa da vida do cego Justimiano e de sua mulher, dona Malvina.

Os dias se arrastavam lentos, esparramando-se sobre a vida do casal e da sua amassante e perpétua desgraça.

Eu conto este fato para exaltar a natureza humana, capaz de suportar as mais pesadas cargas de infelicidade sem o desespero radical, como, por exemplo, recorrer ao suicídio.

Noto que é tão espantosa a capacidade humana de resistir à aflição quanto o é a de ser cruel.

Baseio-me no fato narrado aqui neste jornal na semana passada, quando o ex-deputado do Acre Hildebrando Pascoal foi condenado a 18 anos de prisão por ter torturado até a morte um mecânico apelidado de Baiano, que se recusava a denunciar quem matara o irmão do ex-parlamentar.

O ex-deputado, com seus capangas, amarrou o pobre homem e depois, com a ajuda de uma motosserra, decepou seu pênis, serrou um braço e uma perna do torturado, furou os seus dois olhos e cravou a marteladas um prego na testa da vítima, terminando o massacre inédito e brutal ao desferir quatro tiros sobre o coitado.

Uma maldade insuperável.

Estranha capacidade de sofrer das criaturas humanas.

E mais estranha ainda a capacidade de ser cruel, como demonstra a tortura comandada pelo ex-deputado.

Consegue caber incrivelmente no coração do homem todo o sofrimento imposto pelo destino.

E do cérebro do homem nasce todo e qualquer plano de maldade executada contra o próximo, por mais gigantesca que seja.

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