quarta-feira, 16 de setembro de 2009



16 de setembro de 2009 | N° 16096AlertaVoltar para a edição de hoje
PAULO SANT’ANA | MOISÉS MENDES - INTERINO

Do tempo do Gildo

Essas gravações com as conversas da Operação Rodin ganham outra vida quando aparecem agora em áudio. Eu li as 1.238 páginas da ação de improbidade administrativa do Ministério Público Federal contra os nove acusados de envolvimento nas fraudes do Detran. Li em dois dias. Levei um ano para ler o Ulisses, do Joyce, e li o Catatau, do Leminski, em um mês. Fui o único além do Leminski que leu o Catatau inteiro.

Com o relatório do MPF, bati meu recorde. Nos dois dias, comi pouco, dormi pouco e tive pesadelos. Sonhava com precatórios, fotos, livros, cones, cadernos, escrituras, tudo aquilo que aparece nas conversas com outro sentido. A PF e os procuradores dizem que esses eram os nomes para propina. Precatórios e cadernos assustadores, cheios de números, partilhas, apelidos. Sonhava que seria soterrado por escrituras, fotos, cones.

Os grampos da PF pegaram mais de 20 mil telefonemas. É de tontear telefonista de pronto-socorro. Soltas, as conversas são confusas, cifradas, nebulosas, tortuosas. Mas o MPF seguiu os rastros de cada uma, fez as conexões das falas com os movimentos dos envolvidos.

Assim, as falas ganham sentido. Agora, com os áudios que começam a sair da CPI, temos a entonação da voz, as vírgulas, os silêncios, os pigarros. Os pigarros são aterrorizantes.

Essas conversas com informações em código acionam a memória de quem viveu no Interior. Me criei ouvindo os avisos da Rádio Marajá, de Rosário do Sul, e da Rádio Alegrete. Notícias e pedidos de gente da cidade para os parentes e conhecidos da campanha.

São os programas de mensageiro, os e-mails do vasto mundo dos campeiros. Há todo um folclore em torno desses avisos com notícias de quem foi à cidade fazer compras, ir ao médico, ou está esperando alguma encomenda das fazendas.

Há muito do formato desses avisos nas conversas gravadas. Imaginei o que a PF teria gravado nas rádios do Interior se os envolvidos na Operação Rodin morassem no Alegrete e os avisos fossem lidos pela voz potente do saudoso Aury Dornelles. Aury se divertia lendo os avisos.

Imagino que seria mais ou menos assim:

- Atenção senhor Decênio, láááá no Jacaquá. O Frutuoso avisa que ainda espera as batatas e que não aceita receber em parcelas. Manda dizer que a porquinha dará banha da boa.

- Guaçu Boi, atenção senhor Capitulino. O doutor Plácido recebeu as alfaces e pede que continuem regando a horta do Liderança uma vez por mês.

- Atenção, atenção dona Dalcenira, no Touro Passo ou onde estiver. Seu marido avisa que esperava os precatórios e recebeu dois chuchus. Se chover, fica na cidade até a chegada da escritura do boi manso.

- Atenção senhor Aldemiro, na Jararaca. O Tibo pede que mandem o Tibica pelo ônibus das onze. Enviem junto um bonsai de repolho e dois rolos de fumo. Entregar à meia-noite nos fundos da estação. A senha é: nos fumo.

- Atenção dona Valcíria, lá nos rincões do Itapevi: Anastácio pede que tirem a alfafa do boi do potreiro grande e mandem mais queijo com 7.1 de gordura porque o jurídico comeu toda a primeira remessa.

Os avisos sobrevivem, nesses tempos de Internet, nas rádios de São Gabriel, Candelária, Itaqui, Lajeado, Santiago, Bagé, nesse mundaréu onde a única coisa virtual é o boitatá. Vou parar porque me deu saudade do Gildo de Freitas. No tempo do Gildo não existia tanta bandalheira.

Nenhum comentário: