quarta-feira, 23 de setembro de 2009


MARCELO COELHO

A lei dos mais fortes

Contestado nos Estados Unidos, o darwinismo lá funciona nas situações erradas

OS ESCOCESES gostam de gaita de foles, os franceses comem caramujos, e os americanos... Bem, os americanos têm muitas particularidades, e uma das mais espantosas é a resistência deles a um serviço universal de saúde.

Bastou querer que exista atendimento médico para todos, pago com recursos do contribuinte, para que Barack Obama comece a ser chamado de nazista e comunista.

É difícil entender por que tantos grupos de opinião se mostram irredutíveis nesse ponto; afinal, países como França e Inglaterra estão longe de constituir uma ditadura socialista, e mesmo a ultraliberal Margaret Thatcher não foi a ponto de privatizar o sistema de saúde britânico.

O assunto, de qualquer modo, não teria muito para mobilizar um colunista brasileiro; eis um tema bastante técnico e interno à sociedade norte-americana.

Acontece que peguei recentemente, em DVD, o documentário de Michael Moore sobre o problema. Chama-se "Sicko", e não há como reagir com indiferença às coisas que ele mostra ali. Imagino o que ele faria no Brasil.

Moore é criticado pelo sensacionalismo e pela parcialidade. Mas de uma coisa ninguém pode reclamar.

Não há tema, por ingrato que seja, que ele não transforme num documentário eletrizante, de significado universal.

É simplesmente diabólico. Casos e mais casos de arrepiar os cabelos (e de partir o coração, para usar outro clichê) sucedem-se na tela, sem prolongamentos excessivos nem abreviações forçadas.

Vemos uma pessoa cuja quimioterapia não será paga pelo seguro-saúde particular. O argumento é que havia sonegado uma informação quando preencheu os formulários.
A saber, que tinha tido catapora ou coisa parecida quando era criança.

Seria apenas um caso isolado; mas o diretor passa a entrevistar uma médica, que trabalhava para um seguro-saúde. Os pedidos de reembolso e de pagamento passavam por suas mãos. Ela conta que o plano de saúde dava bônus salariais quanto maior fosse o número de pedidos que recusasse.

Esse nem sequer é o maior problema, como se sabe. Dezenas de milhões de americanos não têm plano de saúde nenhum. E tome casos apavorantes.

Uma velhinha, depois de uma semana num hospital, não tem mais como pagar. Solução: é posta num táxi, com o tubo de soro ainda enfiado na veia. Deixam-na diante da porta de um albergue, onde não estão previstos cuidados médicos. Seria tudo uma sucessão de histórias desse tipo, se Michael Moore fosse um documentarista comum.

Ele vai muito além, e o caminho que o filme vai tomando é de uma radicalidade genial.

Moore resolve saber o que aconteceu com as pessoas que se apresentaram como voluntárias para ajudar no resgate das vítimas do 11 de Setembro. Não bombeiros ou paramédicos, que dispõem de algum tipo de cobertura de saúde. Mas sim os cidadãos comuns, que se mobilizaram com a tragédia.

Muitos sofrem de problemas pulmonares, dada a quantidade de fumaça e poeira que inalaram durante as operações de salvamento. Não tinham plano de saúde. Onde encontrarão assistência médica?

A solução apresentada por Moore, que reúne um grupo de pessoas nessa condição, deve ser mantida em segredo aqui. Só posso recomendar que se assista ao DVD.

Fica-se também com uma ideia razoável a respeito do intenso processo de doutrinação ideológica que foi feito nos Estados Unidos, pelo menos a partir da década de 1950.

Havia um LP, distribuído para grupos de donas de casa, em que Ronald Reagan lia uma preleção a respeito dos perigos da medicina "socializada".

Lembro-me de que, mesmo no Brasil, um pouco desse lobby foi tentado, durante os debates sobre a Constituição de 1988.

O problema, de todo modo, tende a ficar mais complicado. Na medida que as pesquisas científicas podem prever com mais exatidão as chances de alguém desenvolver uma doença, o próprio conceito de seguro-saúde se altera: o componente de acaso do sistema vai desaparecendo no limite -enquanto o custo dos cuidados médicos cresce e agrava as desigualdades entre os cidadãos.

O debate em torno do assunto pode ser interno aos Estados Unidos e -como a questão do darwinismo, por exemplo- relativamente resolvido em qualquer outro país civilizado. Mas diz muito a respeito do mundo em que vivemos. Justamente, a velha lei da sobrevivência dos mais fortes, sem dúvida, mostra aqui as suas garras, como nunca.

coelhofsp@uol.com.br

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