
11 de abril de 2009
N° 15935 - PESQUEIRO | LUÍS AUGUSTO FISCHER
Hamlet e Hitler
Em março agora, foi posto em leilão um livro pertencente a Adolf Hitler, aquela nefanda figura da primeira metade do século passado. Líder populista da Alemanha, capaz de imantar as massas a partir de preconceitos antigos, especialmente contra os judeus, foi o executor do inominável massacre de milhões de seres humanos, ainda hoje ressoando na consciência de todo o mundo civilizado.
Paradoxalmente, Hitler era leitor e bibliófilo militante, que ajuntou, em três bibliotecas pessoais (todas bem cuidadas), mais de 16 mil volumes, a maior parte dos quais sumida logo depois de sua derrocada, na mão de sabe-se lá quem, de soldados americanos a curiosos da vizinhança. Ele tinha, por exemplo, uma coleção de Shakespeare em dez volumes, encadernada em couro trabalhado a mão, gravado com a suástica e as iniciais AH.
Consta que ele gostava em particular da tragédia Hamlet; consta que repetia muito a famosa frase do príncipe dubitativo, “Ser ou não ser?”.
Mau leitor o Hitler, é o que me ocorre dizer, medindo a frase com a vida real. A história do infeliz Hamlet conta que ele retorna para sua casa para enterrar o pai assassinado e ali fica sabendo que a morte fora tramada por seu tio e sua mãe, os quais, para agravar tudo, casam-se, mal o defunto havia passado desta para a dita melhor; ao saber disso tudo, Hamlet se coloca a radical questão de vingar o pai, mas entra em parafuso ao considerar as dimensões envolvidas na ação, a começar pelo fato de que sua mãe está envolvida no caso; ele começa a duvidar, a relativizar a hipótese de ação pela realidade da reflexão sobre o ato, e não consegue desentalar do impasse.
Mau leitor porque, tendo visto ali aquela espécie de suprema ambivalência, que tanto nos fala até hoje - o intelectual sofisticado posto diante da contingência da ação, o filho leal diante da mãe má, o herdeiro inapetente diante do trono que se oferece -, Hitler respondeu a pergunta metafísica de Hamlet com um vigoroso “sim”, descendo do muro filosófico pelo lado pragmático e duro. Resolveu, à sua maneira, ser; e foi um assassino bárbaro, como Hamlet poderia ter sido, se não se impusesse a dúvida.
O fogo e a tela
Não faz muito, andei lendo um pouco mais a obra de Marshall McLuhan, o cara que cunhou a expressão “aldeia global”, um dos primeiros comentaristas deste nosso tempo internético – e olha que ele pensou o que pensou apenas com a televisão, sem conhecer a exuberância da rede mundial de computadores (ele nasceu em 1911, no Canadá, e faleceu em 1980).
Queria saber mais sobre a divisão que ele sugeriu haver entre as artes, umas mais frias (a literatura, por excelência), outras mais quentes (as artes públicas e de performance). Daí derivei para outras leituras conexas, até que topei com um artigo, publicado em 2001 e disponível em http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp057.asp. Chama-se Arquitetura Virtual e seu autor é Emanuel Dimas de Melo Pimenta, arquiteto português.
Ali leio que, antes da televisão, o olho humano só conhecia uma situação em que ficava parado, sem os tantos movimentos que a retina faz a cada minuto. Essa situação era o fogo: ele imantava o olhar, serenando o frenesi ocular e deixando-nos por assim dizer siderados.
Não é à toa, diz o articulista, o fogo ritual de tudo que é religião, das mais remotas às mais recentes, como o gauchismo, digo eu. Depois do fogo, nem a luz da lâmpada elétrica, nem mesmo o cinema tinham logrado o mesmo efeito. A televisão sim.
O artigo não é melancólico nem regressivo, mantém-se fora do rumo fácil e inútil de lamentar a existência da onipresente televisão. De minha parte, não pude frear a imaginação ao comparar as duas cenas: gente em volta do fogo, no mundo pré-urbano, olhos fixos mirados lá no interior da luz, e gente diante da televisão, neste mundo citadino que nos coube conhecer, olhos vidrados lá na tela.
Somos piores que os que só olhavam o fogo? Não, certamente não; em volta do fogo inventamos e celebramos histórias, e o vídeo nos conta histórias. Mas algo se perdeu na passagem do fogo à tela, além da habilidade de caçar, a força bruta, o senso de direção, porque a televisão não nos passa a palavra, nunca.
Drummond Dixit
A flor e a náusea, um fragmento especialmente melancólico e negativista
Vomitar este tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.
Lenda urbana
A primeira vez que percebi o uso da expressão “lenda urbana” não faz muito, coisa de uns meses atrás. Luíza, minha afilhada (17 anos), valeu-se dela a propósito da conexão entre um clássico do rock da minha intimidade, The Dark Side of The Moon, do Pink Floyd, lançado em 1973, e o filme O Mágico de Oz, de 1939.
Eu não sabia que, colocados os dois em sincronia, o disco funciona como uma trilha sonora para o filme, ilustrando passagens e contrubuindo para a consecução do sentido. Pois a Luíza comentou e disse, “É uma lenda urbana, tri conhecida”. Era? Eu não sabia.
Semana passada a ouvi de novo: alguém me fala da hipótese de que o atual governador de Pernambuco, Eduardo Campos, que vem a ser neto de Miguel Arraes, seria filho de, te segura aí, Chico Buarque de Holanda. E tudo fecha: as datas são compatíveis; parece que há uma certa nuvem sobre a identidade de seu pai; ele nasceu num período em que Chico era próximo da família, no exílio europeu imposto pela ditadura militar; e a tudo isso se acrescenta que ele tem olhos claros.
Quem me contou, o Leandro Valiatti (também jovem), comentou: “É uma dessas lendas urbanas”. De novo a expressão, para mim ainda fresca, com sabor de recém-inventada.
Domingo último, em matéria na Folha de S. Paulo sobre Dilma Roussef, a repórter (que presumo ser jovem) relata fatos do passado militante da atual ministra, lá nos anos 60, entre os quais constaria a preparação do sequestro de Delfim Netto, o mesmo, que era então ministro da Fazenda. E diz o texto: “O ambicioso sequestro era uma espécie de ‘lenda urbana’ entre poucos militantes de esquerda nos anos 70”.
A terceira aparição do termo, para a minha consciência. Aqui, com um anacronismo, que registro, para os anais da filologia: tenho certeza de que, se se falava em tal plano nos anos 70, seguramente ninguém o chamava de “lenda urbana”, pelo bom motivo de que não havia a expressão, quer dizer, o conceito. Chamaria de intriga, de fofoca, por aí.
Ao dizer “lenda urbana”, o que é que se diz? Se diz, para começo de conversa, que há outras não urbanas, as rurais. Lenda rural seria, por exemplo, a da Mboitatá, a do Negrinho do Pastoreio, a do Saci (falando nisso, salve, salve, Colorado, Saci Centenário!), algo criado sabe-se lá por quem (talvez o mais correto fosse dizer que foi criada por ninguém, ou por todo mundo) e expresso na forma de um relato, com personagens e ação, os quais se desenvolvem num tempo incerto, no passado, e afloram num desfecho que encerra alguma sabedoria, muitas vezes prática.
Já a lenda urbana – fui ao Google para averiguar a incidência do termo, e logo aparece até verbete na Wikipedia – é uma fofoca, uma intriga, uma suspeita, que se dissemina nos ambientes urbanos, igualmente sem autoria conhecida e também com personagens e ação, atuando em cenário convenientemente citadino, e pode acabar em surpresa, em susto, ou até em algo parecido com o terror – histórias sobre um certo palhaço da kombi, que rapta crianças na periferia;
que os sanduíches do MacDonald’s seriam feitos de carne de minhoca; que maldosos colocariam giletes em escorregadores, esta uma das raras que já havia 50 anos atrás e que até hoje lembro, ao deparar com um desses aparelhos (que hoje, por sinal, parece que são chamados de “escorrega”, sem o antigo sufixo). Antes a coisa andava de boca em boca, lentamente; hoje, com a internet, vai de tela em tela, na velocidade da luz.
Quer dizer: lenda urbana é lenda, resultado da nossa insaciável vontade de encantar, assustar, advertir, divertir, fabular, encontrar e inventar sentido, tudo isso que temos feito desde que paramos em volta do fogo, olhos fixos naquele luz encantatória, para compartilhar a comida e a experiência.
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