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terça-feira, 17 de março de 2009
Política Autor(es): Fábio Wanderley Reis - Valor Econômico - 16/03/2009
Cartolas sem coelhos
Em evento universitário recente, ouvi um filósofo político falar da intensidade com que o interesse pela ação política motiva o seu trabalho. A declaração vinha a propósito das relações entre a reflexão teórica sobre questões políticas e a bifurcação que contrapõe a prática política, de um lado, e, de outro, as questões metodológicas trazidas pela preocupação de corroboração empírica ou factual das proposições que a reflexão produz.
Desse ponto de vista, surge a possibilidade de objetar que o interesse pela ação política, ou o compromisso com ela, pode ligar-se a equívocos variados e relacionar-se de maneira problemática com o diagnóstico da situação em que se trata de agir. E a própria ação, portanto, pode vir a ser equivocada e eventualmente carregada de efeitos nefastos.
Naturalmente, esse é, no fundo, o velho tema que associa a ideia de ideologia com distorção e erro, como se dá há muito na chamada sociologia do conhecimento. Há um uso "nobre" de ideologia, frequente no campo da política, que é contrastante com esse, indicando antes a capacidade de reflexão elaborada e tomada de posição sofisticada a respeito dos assuntos políticos - e pode-se perceber que "ideologia política" envolve, na verdade, os dois elementos, tanto o de construção intelectual mais ou menos complexa quanto o de engajamento, parcialidade e rigidez.
De todo modo, o componente de rigidez e erro esteve fortemente vinculado, até há pouco, em particular com certas posições mais aguerridas de esquerda, de orientação socializante ou mesmo revolucionária, enquanto as posições contrárias se pretendiam pragmáticas e realistas - ou pelo menos ter os valores que admitidamente as guiavam fundados na reflexão mais sólida e bem respaldada nos fatos.
Com as proporções da crise de agora, porém, a conexão entre ideias e fatos se tornou objeto de perplexidade geral. Em artigo de dias atrás ("Seeds of its own destruction", FT.com, 8 de março), Martin Wolf dirige-se à ideologia como orientação valorativa geral e não deixa por menos: o colapso da ideologia do livre mercado é equiparado, sem vacilações, ao da do socialismo revolucionário. Mas problemas de conhecimento têm lugar de relevo em sua análise: Wolf não só reconhece ser "impossível saber, nesta encruzilhada, aonde estamos indo", mas também, citando Paul Volcker, aponta a causa crucial da crise no fato de que o novo e sofisticado sistema financeiro, ao contrário do que se presumia (que sua sofisticação mesma transferiria o risco para os mais capazes de administrá-lo), "falhou no teste de mercado", transferindo o risco aos menos capazes de entendê-lo - e dando razão à caracterização de Warren Buffett dos derivativos como "armas financeiras de destruição em massa".
As reavaliações dos economistas se multiplicam e aprofundam. Em sua coluna de 10 de março no Valor, Delfim Netto recorre longamente à crítica dos rumos dominantes da economia como disciplina acadêmica empreendida em trabalho recente por "competentes membros do ´mainstream´", como descreve os autores. Aí se destaca a parcela de responsabilidade da disciplina na produção da crise, a má alocação de recursos de pesquisa e a falha na relação com a sociedade ao não alertar sobre as limitações de modelos cuja proliferação ocorre não obstante ignorarem elementos fundamentais na produção dos resultados dos mercados reais.
Um aspecto saliente quanto aos elementos omitidos se expressa, de maneira às vezes até mesmo desfrutável, na concepção das relações entre economia e psicologia. Ainda há poucos dias, na televisão, dizia um professor de economia que chega um momento em que é preciso dispensar os economistas e chamar os psicólogos - o que implica, naturalmente, que a economia nada tem a ver com a psicologia, e me faz lembrar Ibrahim Eris, na presidência do Banco Central, a declarar a certa altura que a inflação que teimava em subsistir era "gratuita" ou sem causas, pois todos os fatores ("econômicos"?) se achavam sob controle.
Seja como for, temos agora a economia comportamental, com sua ênfase nos aspectos "irracionais" das decisões e ações econômicas, e é curioso vê-la utilizada com destaque, ao lado da neurociência e de trabalhos de filosofia da ciência como os de Karl Popper e Thomas Kuhn, num volume dirigido sobretudo a investidores e de autoria de um administrador de fundos de investimento ("Mercados em Colisão", de Mohamed El-Erian, com passagem pela Harvard Management Company e agora na PIMCO).
Mas é talvez especialmente revelador, a respeito desse volume, que, tendo sido escrito em fins de 2007 e começos de 2008, e portanto a alguns meses da aceleração calamitosa da crise, posições otimistas e pessimistas (como a de Nouriel Roubini) quanto ao rumo a ser tomado pelos acontecimentos são nele confrontadas de passagem - com a conclusão de que só o tempo dirá qual das perspectivas está certa...
Comecei com um filósofo, termino com outro. É o esloveno Slavoj Zizek, que apareceu há pouco na "Folha de S. Paulo", em entrevista sobre a crise reproduzida do "Financial Times". Zizek, que se declara "um marxista modesto", diz ser preciso compreender plenamente o que está acontecendo antes de podermos agir de modo sensato, e recomenda afastamento e reflexão.
O papel dos filósofos seria o de ajudar a lançar luz sobre as perguntas que as sociedades deveriam formular, em lugar de apresentar soluções prontas. "Sinto-me como um mágico que mostra apenas cartolas, nunca coelhos.
" E o pior é que, por muito que se reflita, diante da confusão destes tempos extraordinários e dos especialistas perplexos, a competência com que se faz necessário contar parece ser de fato a de mágicos capazes de achar coelhos na cartola.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
E-mail fabiowr@uai.com.br
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