quinta-feira, 12 de março de 2009


PASQUALE CIPRO NETO

O Tejo e a lagoa

"A literatura nunca é apenas literatura. O que lemos como literatura é sempre mais -é história, psicologia, sociologia"

COMO FAÇO HÁ MAIS de 20 anos, fugi do Brasil no Carnaval. Uma das minhas paragens se deu em Lisboa, a sempre bela capital de Portugal. Depois de matar a saudade de alguns lugares que me são muito caros, fui até a praça do Comércio, caminho para o Martinho da Arcada, restaurante (inaugurado em 1782) que se tornou ponto constante do grande Fernando Pessoa.

Ao chegar à praça, uma surpresa: está tudo fechado, com tapumes (há uma grande obra de recuperação do rio Tejo, em que, diariamente, são despejados, "in natura", os esgotos de mais de 100 mil ulissiponenses).

E o que se lia em alguns tapumes? Um dos mais belos poemas de Pessoa (Alberto Caeiro): "O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, / Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia / Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia / O Tejo tem grandes navios / E navega nele ainda, /

Para aqueles que veem em tudo o que lá não está, / A memória das naus. / (...) Pelo Tejo vai-se para o mundo. / Para além do Tejo há a América / E a fortuna daqueles que a encontram. / Ninguém nunca pensou no que há para além / Do rio da minha aldeia. / O rio da minha aldeia não faz pensar em nada. Quem está ao pé dele está só ao pé dele".

Impressionante (e talvez banal, para quem lê poesia como quem lê balanços contábeis), o poema de Caeiro se apoia num eterno contraponto: o universo concreto, palpável do homem (o rio da aldeia) e o homem no universo talvez teorizado, talvez desconhecido e talvez não experimentado/enraizado (o Tejo).

O duplo valor da palavra "só" ("sozinho"/"apenas", em "Quem está ao pé dele está só ao pé dele") parece acentuar o descompasso entre o absoluto (o Tejo é) e o relativo (o Tejo não é, e não é porque não passa).

Pois agora peço licença ao leitor para fazer uma ponte entre o rio de Pessoa/Caeiro e "Lagoa", de Carlos Drummond de Andrade: "Eu não vi o mar. / Não sei se o mar é bonito. / Não sei se ele é bravo. / O mar não me importa. / Eu vi a lagoa. / A lagoa, sim. / A lagoa é grande / e calma também. / Na chuva de cores da tarde que explode, / a lagoa brilha. / A lagoa se pinta / de todas as cores. / Eu não vi o mar. / Eu vi a lagoa".

Cito um depoimento do querido e saudoso professor João Alexandre Barbosa (de quem fui aluno) no seminário "Linguagem e linguagens: a fala, a escrita, a imagem", a respeito do papel da literatura ("Literatura Nunca É Apenas Literatura"): "...o que lemos como literatura é sempre mais -é história, psicologia, sociologia. Há sempre mais que literatura na literatura". O conceito do professor João Alexandre encaixa-se como luva na ponte Caeiro/Drummond.

Respectivamente, a lagoa e o mar estão para Drummond como o rio da aldeia e o Tejo estão para Caeiro. No mesmo seminário, João Alexandre citou um episódio tragicômico: "...uma aluna (...) disse-me que estava muito interessada em ler um livro que fosse importante, mas que obedecesse a algumas condições: antes de mais nada, tinha de ser fininho".

O mestre pensou e recomendou à moçoila a leitura de "A Metamorfose", de Franz Kafka. Duas semanas depois, a criatura retornou e disse o seguinte: "Professor, comprei o livro que o senhor indicou, li e detestei, porque, logo no início, o personagem se transforma num inseto, e isso, professor, não é verdade, isso não pode acontecer". E assim caminha a humanidade. É isso.

inculta@uol.com.br

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