terça-feira, 24 de março de 2009



24 de março de 2009
N° 15917 - MOACYR SCLIAR


O desafio da Rua Espírito Santo

“Sinto uma dor esquisita / das ruas de Porto Alegre / onde jamais passarei”, escreveu o grande Mario Quintana, um poema que sempre me vem à lembrança na semana de Porto Alegre.

Porto-alegrense nato, e andarilho infatigável, desde criança percorri as ruas da cidade, que era então bem menor e que eu pretendia conhecer toda. Hoje isto é missão impossível: as ruas de Porto Alegre por onde jamais passarei são legião, coisa que aceito resignado, como aceito a passagem do tempo (faço aniversário na mesma cena da cidade).

Mas as ruas pelas quais passei, e que constituem para mim a anatomia da cidade, para usar mais uma expressão do Mario, representam um quinhão mais que suficiente de geografia emocional; cada uma delas evoca passagens de minha própria vida: a Fernandes Vieira, onde eu jogava bolinha de gude, a Vasco, a Felipe, a Henrique Dias, a Osvaldo Aranha, coração do Bom Fim, a Santana, onde morava minha primeira namorada, a Rua da Praia, a Borges, a Bento Gonçalves do Sanatório Partenon, onde trabalhei...

Mas quero falar de uma rua que tem um aspecto simbólico importante: a Espírito Santo, no centro da cidade.

Para começar, é antiga a devoção ao Espírito Santo em Porto Alegre: trata-se de uma herança açoriana e deu origem à tradicional Festa do Divino, no Bom Fim: em frente à Capela do Divino era montado um parque de diversões inteiramente ecumênico que os judeuzinhos do bairro frequentavam alegremente.

Quanto à rua em si, é muito antiga. Em seu definitivo Guia Histórico de Porto Alegre, conta-nos Sérgio da Costa Franco que foi aberta em outubro de 1817, atendendo a um requerimento dos moradores da Rua do Arvoredo, atual Fernando Machado. No início era conhecida como Beco do Império.

E a ele se refere, no poema Imemorial – quem? – Mario Quintana, claro: “À noite pervaguei pelo Beco do Império/que há cinquenta anos não existe mais...” Beco do Império é também o título de um poema de Athos Damasceno Ferreira: “O silêncio, no beco escuro/ dependurou a sombra no muro e dorme...”

O termo “Império” nada tinha a ver com D. Pedro I ou D. Pedro II; referia-se a uma construção em que eram celebradas as festas da Irmandade do Divino Espírito Santo, junto à Matriz. Assim, em 1856, o nome do logradouro foi mudado para Beco do Espírito Santo.

Com o tempo, o beco tornou-se rua, uma “ladeirenta via pública”, para usar uma expressão do Sérgio da Costa Franco. E bota ladeira nisso. Estamos falando de uma das subidas mais íngremes de uma cidade conhecida por suas lombas.

O que nos remete ao aspecto simbólico antes mencionado. Esta subida comunica duas distintas regiões da cidade, que correspondem a diferentes culturas, diferentes estratos sociais. Na base está a modesta Cidade Baixa, com suas ruas tortuosas, suas lojinhas, suas casas antigas, a pitoresca pontezinha de pedra, a Associação Cristã de Moços.

Lá no alto, a Praça da Matriz, com a Catedral, o Palácio Piratini, a Assembleia, o Tribunal de Justiça, o Theatro São Pedro. É pois de uma verdadeira ascensão que estamos falando, que requer, além de dedicação espiritual, um não pequeno esforço físico. Ao longo de minha vida, muitas vezes subi (a pé; de carro não dá, é contramão) a Rua Espírito Santo.

E continuo subindo. É uma prova de fidelidade à minha condição de porto-alegrense. E é um teste para minha resistência e para minha determinação. Um desafio que, apesar dos anos que passaram, continua terminando num triunfo glorioso, numa silenciosa ainda que arquejante homenagem à cidade do meu coração.

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