sábado, 28 de março de 2009



29 de março de 2009
N° 15922 - DAVID COIMBRA


Homens no ventre da terra

O jovem Vincent Van Gogh, sequioso para mudar o mundo e beber a vida, como todos os jovens, decidiu seguir a carreira de pregador. Saiu da sua Holanda natal e foi para a Bélgica, onde planejava atuar como pastor protestante.

Era uma região de mineiros de carvão, talvez os trabalhadores mais sacrificados de tantos trabalhadores sacrificados que há. Van Gogh ficou assombrado com os sofrimentos impostos às famílias dos mineiros e, tomado de ânsia por reproduzir o que via, colheu pedaços de carvão do chão e começou a desenhar cenas do dia-a-dia dos trabalhadores. Assim descobriu a sua vocação para a pintura, e assim a Humanidade ganhou um gênio.

Há quem diga que Émile Zola inspirou-se nessa passagem da vida de Van Gogh para escrever o seu “Germinal”. Acho que não. Quando Germinal foi publicado, nos anos 80 do século 19, Van Gogh não era ninguém senão um fracassado candidato a pintor. De qualquer forma, Zola também foi viver entre os mineiros para escrever seu romance. Saiu de lá tão tocado que compôs uma obra-prima.

Zola acreditava que dali, da terra prenhe de mineiros que forcejavam no seu ventre, brotaria a revolução. Donde o título do livro: germinal é o nome com o qual os revolucionários franceses rebatizaram março, o mês em que as sementes se desenvolvem sob a terra.

A mais importante região carbonífera do Brasil, até o fim dos anos 80, era o sul de Santa Catarina. Criciúma tornou-se conhecida como a Capital do Carvão. Hoje não existem mais minas em Criciúma, mas aquele pedaço do país restou marcado para sempre pela atividade mineira. Abaixo da superfície, em grande parte da cidade, ainda serpenteiam as galerias das quais os mineiros retiravam o carvão com que alimentavam as usinas elétricas.

Muitos mineiros adoeceram irremediavelmente devido ao trabalho excruciante sob a terra. Eu mesmo já tive na palma da mão um pulmão de mineiro. Por Deus. Um pulmão transformado em pedra preta do tamanho de um radinho de pilha.

Fora extirpado de um mineiro que morreu de pneumoconiose, doença que aflige quem permanece longo tempo em contato com os eflúvios da pirita, o rejeito do carvão. É por isso que os mineiros aposentam-se com 15 anos de trabalho e nenhum deles permanece mais de oito anos sob a superfície.

Essa vida de dificuldades, essas condições precárias produzem homens especiais. Os mineiros, como constataram Zola e Van Gogh, são afeitos à luta. Eu, que vivi em Criciúma, compreendi que muitas vezes aquela cidade cai, mas sempre se levanta e segue em frente com trabalho, com esforço, com legítimo espírito mineiro. Agora mesmo, neste verão, Criciúma foi assolada pela enchente. Não me preocupei em demasia. Sei que a cidade sabe lidar com suas mazelas.

Um homem que considero símbolo desta alma guerreira de Criciúma é Valdomiro Vaz Franco. Em 1968, Valdomiro foi a estrela do único campeonato catarinense conquistado pelo Comerciário de Criciúma. Oswaldo Rolla, o Foguinho, o viu em campo e trouxe-o para o Inter. A partir de Valdomiro, o Inter forjou o maior time da sua história.

Mas não foi fácil. Valdomiro, com seu jeito matuto de ex-mineiro que era, com seu futebol prático mas ainda tosco, não caiu no agrado da torcida. O preferido dos torcedores era Urruzmendi, um ponta uruguaio cheio de habilidade, que fazia dezenas de embaixadas com uma tampinha de cerveja.

Valdomiro entrava em campo abaixo de vaias. Um dia, marcou um gol contra a seleção da Romênia, correu para comemorar com a torcida e o que ouviu foram apupos, não aplausos. Mas Valdomiro não desistiu. Treinava mais do que todos.

Até em casa treinava, caminhando no apartamento com pesos de ferro de oito quilos dentro dos sapatos, atormentando o vizinho do andar de baixo. Valdomiro venceu. É o único octacampeão gaúcho da história. É tricampeão brasileiro. Foi responsável direto por praticamente todos os gols importantes do Inter em uma década.

Nesse mês de abril, Valdomiro prepara-se para começar uma nova etapa da sua vida. Depois de quase 20 anos de obras, vai inaugurar um Centro de Esportes em Criciúma, sua cidade natal. Justamente no mês do centenário do Inter.

Nada mais apropriado. Porque o Inter está na história de Valdomiro e Valdomiro, mais do que qualquer outro jogador desde 1909, ajudou, e muito, a escrever a história do Inter.

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