domingo, 15 de março de 2009


Humberto Braga

QUATRO GRANDES MITOS HUMANOS

1. Prometeu

Prometeu, na mitologia grega, foi um titã que roubou o fogo do céu para trazê-lo à terra e oferecê-lo aos homens, em flagrante desobediência a Zeus, o deus dos deuses.

Por isso foi celebrado como benfeitor da humanidade, mas a divindade máxima o condenou a ser acorrentado num rochedo, onde todos os dias um abutre lhe devorava o fígado.

Prometeu é, pois, o símbolo da revolta contra o poder — real ou aparentemente — indestrutível e inalcançável. E a insubmissão ante um destino que se apresenta como fatalidade. É o desafio inaudito: adesão ao humano em oposição ao divino. Prometeu não planeja destronar o deus dos deuses, mas se rebela contra ele, sem a expectativa da vitória, num gesto supremo de inconformismo.

Assim, desde a Antigüidade, se configurou esse símbolo, como se pode ver na peça Prometeu acorrentado do grande Esquilo que, com Sófocles e Eurípedes, compôs a tríade genial da tragédia grega.

Quando Guilherme, o Taciturno, liderou a insurreição do pequeno povo holandês contra o até então invencível exército espanhol e o advertiram que aquela era uma luta sem esperança, ele respondeu: “Não é preciso esperança para lutar, nem é preciso vencer para perseverar”.

Eis uma atitude prometéica, que acabou triunfante. A Holanda conquistou a liberdade. Outros exemplos históricos desse gênero podem ser apontados: Cortês, queimando as suas naves e investindo com um punhado de sequazes contra o grande império asteca; Napoleão, deixando o exílio de Elba com menos de mil homens para retomar o poder na França etc.

Eles tiveram êxito nessas espantosas e insensatas aventuras, mas não há nem pode haver fundado ou razoável otimismo no gesto de Prometeu. Se não há necessariamente pessimismo nessa atitude, ela parece sempre desesperada.

Daí ser mais típica da revolta do que da revolução, na qual existe uma racionalidade instrumental, uma racionalidade de meios. Nesta se adota um planejamento porque o objetivo perseguido se afigura alcançável. Todo revolucionário é otimista.

2. Dom Quixote

Dom Quixote é o símbolo da luta pelo ideal. Um ideal de altruísmo e abnegação, de doação de si mesmo porque combate por um valor que considera maior que ele próprio. O ideal se distingue do projeto porque nele o sujeito é meio e não fim. Obviamente é excluído o interesse pessoal. Dom Quixote se propõe a defender os fracos contra os fortes. Por isso o gesto quixotesco inspira ternura, ao passo que o prometéico suscita assombro.

Prometeu e Dom Quixote podem, às vezes, aproximar-se mas não devem ser confundidos. Quando Napoleão escapou de Elba para reconquistar a França, ele o fez impelido pela sua sede de poder.

Mas quando um consagrado escritor, Zola, arremeteu contra os poderosos e enfrentou toda sorte de riscos na defesa de um oficial judeu (toda a elite de seu tempo era anti-semita) a quem nunca vira pessoalmente, aí, sim, temos o gesto quixotesco. O Acuso é um documento inspirado pelo espírito do batalhador manchego.

A luta infatigável pelo ideal significa luta contra o realismo, contra o pragmatismo, contra o bom senso acomodador, contra a passividade, contra o espírito de compromisso.

O ideal de justiça, nobreza e generosidade comanda uma ética de consciência que não mede conseqüências (veja-se a famosa distinção de Max Weber entre a ética de consciência e a de conseqüência), nem se arreceia de nenhum perigo. Chega, então, à recusa da realidade e à busca da salida para o impossível, o impossible dream. Contrariamente a Prometeu, Dom Quixote é otimista. Acredita na vitória do seu ideal e cultiva permanentemente o sentimento heróico da vida.

3. Fausto

Fausto foi um taumaturgo do século XVI, que estranhamente transitou para o mundo da lenda. Inspirou grandes escritores que vão de Marlowe, no seu próprio século, até Thomas Mann, no nosso. Mas o Fausto que avultou para nós foi o que emergiu da obra de Goethe.

É o símbolo da insatisfação e da impermanência. É a sede do infinito, do ilimitado, do mais além. É a busca incessante do novo, a inquietação criadora jamais apaziguada, o ímpeto para devassar o desconhecido, a inesgotável ânsia de saber e de transformar. Fausto escapa ao mundo da ética. Quer ir para adiante, seja para onde for, independentemente do bem ou do mal. Quer desvendar o universo a qualquer custo. Prometeu desafiou um deus. Fausto quer ser Deus.

4. Carlitos, o Vagabundo

Prometeu e Fausto não têm realidade visual para nós, mas as silhuetas do Cavaleiro e do Vagabundo são inconfundíveis e inesquecíveis. O último é o herdeiro e o maior representante de uma inumerável cadeia de bufões e pelotiqueiros que a farsa e a pantomima revelaram desde a alvorada dos tempos. E o extraordinário na sua figura é ela ser ao mesmo tempo aberrante e pura, ridícula e patética, feia e graciosa, grotesca e heróica.

Carlitos, o Vagabundo, é sobretudo um símbolo da liberdade, como bem definiu Otávio de Farias. O Vagabundo afirma e preserva sua individualidade ante uma sociedade massificadora, uniformizadora, destrutora da individualidade. Ele manifesta insólita e ostensivamente a sua diferença num meio que não tolera os diferentes.

Tal como Dom Quixote, é um otimista ingênuo, mas irredutível. Nada o abate, vicissitude ou malogro algum o deprime. Sua luta não se apresenta como belicosidade ou agressividade, mas numa instintiva e obstinada resistência da qual não tem família consciência, pois não a racionaliza, não a justifica, nem mesmo a verbaliza.

Carlitos não tem família, não tem casa, não tem trabalho fixo, não pertence a qualquer classe social, não tem planos, não tem objetivos, não tem ideais, não tem ambições, não tem religião, não tem passado e não pode ter futuro, mas ama alegremente a vida e, se não quer mudar o mundo, tampouco se deixa subjugar por ele, apesar da sua aparente fragilidade. Como os mitos anteriores, também não está limitado pela visão da "possibilidade”.

Em todos os quatro mitos há a incrível fé no homem e crença na vida. Nenhum se suicida, como o Werther de Goethe ou o Kiriloff de Dostoievsky. Cada um, à sua maneira, luta ou resiste. E não se sentem menores no insucesso do que na vitória. Como o Velho Marinheiro de Hemingway, acreditam que o homem pode ser destruído, mas não deve sentir-se derrotado Todos são símbolos do Ocidente e Fausto prepondera no espírito da modernidade.

Todos os quatro são anormais, isto é, se distanciam da normalidade, no sentido da média do comportamento individual. Não são representativos do ser humano comum, por isso são mitos. Não se adaptam no seu ambiente social. Por que, então, consideramos Dom Quixote sublime e não Sancho Pança, quando sabemos que na humanidade há incomparavelmente mais pessoas assemelháveis a este do que àquele?

Precisamente porque o cavaleiro da Mancha, tal como os outros mencionados, aponta para o supra-humano, para o além do homem. E não se confunda o supra-humano com o super-homem de Nietzsche, que encarna um ideal de força e de poder sobre os outros homens supostamente inferiores.

Mas Prometeu, Dom Quixote, Fausto e o Eterno Vagabundo são símbolos de algo maior do que o homem comum e é isso que lhes assegura a grandeza e a perenidade.

MITOS E ARQUÉTIPOS DO HOMEM CONTEMPORÂNEO
Humberto Braga - Walter Boechat - Glauco Ulson - Recebido de minha amiga Tânia Lyra

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