Publicado em 10 de junho de 2024 às 08h44.
“Como será amanhã?/ Responda quem puder/ O que irá me acontecer?/ O meu destino será como Deus quiser/ Como será?” Num ontem, esses versos musicais me pareciam eternos, reconhecíveis por todos, sempre.
E como será o amanhã? O amanhã nosso, individual e coletivo, do Brasil, do planeta? Esse é um tema de pesquisa da Cátedra Unesco de Alfabetização em Futuros, sediada no Museu do Amanhã, o museu científico que vem recebendo mais de seis milhões de visitantes desde 2015. "Esse estudo de futuros tem um caráter pessoal, que é se indagar como vemos o futuro e acabar se perguntando sobre nós mesmos”, disse o ecólogo catedrático Fabio Scarano.
Um estudo de futuros não se faz “dentro da caixa”. O imaginário de uma realidade futurista precisa estar aberto a lidar com a hipótese de reformulações estruturais, quanto ao que serão as futuras rotinas pessoais, familiares, de trabalho, escola, hospital, casa.
A pauta de futuro de qualquer empresa, hoje, precisa incluir a sua reflexão estratégica quanto à inovação tecnológica e à mudança climática. Avaliar as perspectivas de impacto e de adaptação -- da empresa e de seus stakeholders -- ao modus vivendi que poderá resultar de alterações climáticas e de avanços na inteligência artificial e na robótica, que possam vir a configurar um mundo “pós-trabalho”.
Todo estudo futurista deve perceber que o nosso referencial emocional tem pontos de apoio na realidade presente, que não existiam para gerações anteriores ou, até mesmo, não são acessíveis para parcelas da atual geração.
O sofá, a geladeira, o papel higiênico, o colchão e vários dos produtos cotidianos, que a geração viva já encontrou em plena utilização coletiva quando nascemos, não existiam anteriormente. Foram inventados por gerações anteriores recentes, como descreve Bárbara Soalheiro no livro Como fazíamos sem.
Na calibragem desse olhar, Scarano observa que: “O nosso presente coloniza o nosso futuro. Por isso, temos dificuldades de imaginar futuros diferentes do presente. Nossa imaginação está enraizada nele. Quando pensamos o futuro, fazemos um exercício sobre o presente.” Assim, é importante ampliar a imaginação, para poder conjecturar outros futuros, inclusive em estudos estratégicos de inovação empresarial.
Numa música que não era “Imagine”, John Lennon alertou que futuro é o que acontece enquanto fazemos planos. De todo modo, planejar é preciso. Como ilustra hoje qualquer aplicativo de transporte ou de GPS, é preciso informar a origem atual e o destino pretendido, para planejar a possível rota futura. Sabemos bem que o trajeto real tende a não ser idêntico ao orçado ou planejado, como ocorre também nos planejamentos orçamentários empresariais.
Há riscos de variação futura, numa faixa de previsibilidade, de probabilidade. São riscos que estão no radar e devem ser geridos, inclusive por meio da contratação de seguros. Quais riscos de mudança climática e de disrupção tecnológica são seguráveis? Inundações, pandemias, terrorismo, vulcões, terremotos, cometas? Há riscos que não são seguráveis, que o sistema de seguros e resseguros não aguenta assumir. É preciso considerá-los também.
Reduzindo o zoom para um aspecto mais micro, qual será o futuro das rotinas fisiológicas humanas? Continuaremos sempre sujeitos a essas condições que, hoje, nos parecem tão intrínsecas à nossa natureza humana? No próximo século, é possível que uma futura residência humana não tenha banheiro, cozinha, cama e armários? Quem será o ser humano que viverá nessas circunstâncias?
Em tempos de racionalidade hídrica e de tecnologias alimentares novas, as rotinas de alimentação e uso de água poderão ser modificadas, alterando as rotinas atuais de cozinha e banheiro. Se a tecnologia permitir, quem sentirá falta da rotina de escovação dentária ou da visita periódica ao dentista?
Quanto a vestimentas e moda, a nossa imaginação pode ir além do que cogitar como serão as roupas do futuro. E se não existirem mais roupas? Em um passo adiante na biogenética, pode passar a haver liberdade quanto à escolha da coloração ou textura da própria epiderme humana. Peles verdes, azuis ou amarelas, peles multicor ou estampadas, ou fluorescentes -- como consta já ter ocorrido com o coelho verde Alba (GFP Bunny), num controvertido experimento científico e artístico ocorrido em 2000. Peles com texturas escamadas úteis à natação, ou com texturas emborrachadas ou autoadaptáveis a diferentes condições climáticas.
Os punks dos anos 1980 trouxeram a possibilidade de cabelos multicoloridos, hoje comuns. Neste milênio, passou a haver o uso de lentes de contato não transparentes. A geração atual popularizou as tatuagens, desenhando a pele de parcela significativa da população jovem. Qual geração futura vivenciará epidermes multicoloridas de livre escolha?
Voltando a realidades presentes, a atualidade já vivencia uma intensa rotina de suplementos, procedimentos estéticos, próteses, implantes, terapias genéticas, AI, robótica. Tudo isso sinaliza alguma gradação de recontextualização humana, com relação à configuração “orgânica” do humano “raiz” do século XX.
Um exemplo de bom uso do avanço tecnológico é o implante coclear, que vem restaurando a capacidade auditiva de pessoas surdas desde a virada do milênio. Outro potencial case futuro é a Neuralink, do controvertido bilionário Elon Musk, que se dedica a criar uma interface cerebral que possa restaurar a autonomia de pessoas que hoje vivenciam deficiências, como a tetraplegia.
Seguindo adiante, há quem cogite aumentar as capacidades intelectuais e físicas do humano atual, como o movimento transumanista de Nick Bostrom, que fundou o Future of Humanity Institute em Oxford. Em paralelo, a Singularity University, de Ray Kurzweil, vem propagando que até 2045 ocorrerá a singularidade, a convergência entre o ser humano e a máquina.
Essas iniciativas lidam com a perspectiva de que os humanos futuros possam passar a viver de forma diferente do que “sempre” vivemos até aqui, por um tempo de vida similar às tartarugas ou com modalidades sensoriais típicas de outros animais, como sonares, orientação magnética, sensores para eletricidade e vibração, olfato e visão mais apurados, ver a radiação infravermelha, ou perceber sinais de rádio.
Como será um futuro convívio entre nós, humanos raiz, e essas novas pessoas? Os riscos desse convívio causam reflexões e preocupações, como as explicitadas em diversas cartas abertas de cientistas. “Viraremos animais de estimação dos futuros robôs?” perguntou Julia Bossmann, presidente do Foresight Institute. Segundo ela, a dominação humana sobre os animais decorre primordialmente da superioridade humana em inteligência e engenhosidade, mesmo quando os animais têm dentes mais afiados, músculos mais fortes e maior tamanho. O que ocorrerá se a máquina superar a inteligência e engenhosidade humana?
Nesse rumo, o polêmico Professor Lovelock deixou o alerta de que pode surgir uma grande incapacidade de comunicação entre as máquinas e os humanos. Se as máquinas tiverem um ritmo de raciocínio muito mais rápido do que o humano, o diálogo entre ambos poderá ser tão inviável quanto a uma conversa, hoje, entre uma pessoa e uma árvore.
É evidente que essa gama de possibilidades futuras suscita preocupação ética global, pelos riscos de uso involuntário, não regulado ou seguro, bem como pelos riscos de eugenia. Há, portanto, grande cautela quanto ao uso dessas possíveis tecnologias. Contudo, são tecnologias que não são mera ficção científica, podendo sim se tornar disponíveis e, como tal, podendo vir a fazer parte de uma realidade futura. Clandestinamente, podem até já estar em uso experimental em algum lugar.
Os cenários distópicos de um amanhã apocalíptico incluem guerras, migrações climáticas, superpopulação, fome, catástrofes naturais, com a conflagração de conflitos sociais globais. Diante dessas perspectivas, a SpaceX, do mesmo Musk, trabalha para a possibilidade de que humanos possam habitar o planeta Marte.
A palavra distopia é de uso relativamente recente, deste milênio. Utopia era a palavra similar prevalente no século anterior, de sentido inverso. “Há um mundo bem melhor/ Todo feito pra vocês/ É um mundo pequenino/ Que a ternura fez.” Quais são as utopias contemporâneas? Existem? Qual o mundo melhor queremos todos construir? Qual é o melhor futuro para o convívio até o ano 2100? Qual o futuro que nos inspira em 2024, 2025? Qual amanhã sonhamos construir juntos? Que verso nos sensibilizará? “Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro!”
Um mundo de vibe ESG, pós trabalho, pós capitalismo, com relacionamentos não tóxicos, full compliance, padronização da diversidade, “paz universal”? Será viável, sustentável? Não será um mundo plastificado, de bonecas Barbie, robotizado? Nessa monotonia, não surgirá sempre um/a/e rebelde montado no ícone de um cavalo selvagem que irá balançar a mesmice e “mudar tudo isso que está aí”?
Mas essa ruptura não seria uma novidade previsível, uma espécie de amanhã que repetirá vários ontens, como num eterno retorno de ciclos humanos? O ciclo extremado da Guerra Fria do século XX foi intervalado pelas décadas de globalização, mas ressurge agora na Paz Quente de uma desglobalização. Por exemplo, esse verso é um funk contemporâneo ou uma canção dos anos 1970? “Amanhã/ Mesmo que uns não queiram/ Será de outros que esperam/ Ver o dia raiar/ Amanhã/ Ódios aplacados/ Temores abrandados/ Será pleno/ Será pleno”.
Novas personas vêm se chegando ao presente da conversa futura. Peço à Alexa Amazon que lembre outro verso na música lá do primeiro parágrafo: “vai chegando o amanhecer/ Leio a mensagem zodiacal/ E o realejo diz/ Que eu serei feliz/ Sempre feliz.” Você pergunta ao Bing Microsoft: “O que é um realejo?”. ChatGPT fisolofa: “O hoje é o amanhã que nos foi prometido ontem.” Gemini Google relembra: “Para ser feliz é preciso ver/ Esse mundo azul na imensidão/ É fazer das tristezas estrelas a mais/ E do pranto uma canção.” Siri Apple cantarola: “Amanhã/ Será um lindo dia/ Da mais louca alegria/ Que se possa imaginar”.
E assim vamos nós, #backtothefuture, de volta para um futuro, para futuros, para possibilidades de um amanhã melhor.
*Referências musicais: “O Amanhã” de Didi, na voz de Simone; “Sujeito de Sorte” de Belchior, na voz de Emicida; “Pequeno Mundo” na versão de Moacyr Franco; e “Amanhã” de Guilherme Arantes.
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