Mazelas brasileiras mais profundas
TODAVIA/DIVULGAÇÃO/JC - Jaime Cimenti
A árvore mais sozinha do mundo (Todavia, 208 páginas, R$ 69,90), novo romance de Mariana Salomão Carrara, autora de Não fossem as sílabas do sábado ( Prêmio São Paulo de Literatura 2023 - Melhor Romance), com criativa forma narrativa e frases bem trabalhadas, apresenta nossas mazelas familiares, sociais e econômicas mais profundas.
Mariana nasceu em São Paulo em 1986 e é autora dos romances Fadas e copos no canto da casa, Se Deus me chamar não vou e É sempre a hora da nossa morte amém, indicados para o Prêmio Jabuti de 2020 e 2022.
O centro da trama de A árvore mais sozinha do mundo é ocupado por Guerlinda e Carlos, casal que vive com os filhos Alice, Maria e Pedrinho numa pequena roça no Sul do país. O cultivo do tabaco dá sustento à familia, que dia após dia enfrenta as oscilações da natureza, esguichando venenos e adubando as vergas para que as folhas cresçam e atinjam a qualidade ideal.
Enquanto esperam pelo tempo da terra e em meio a investidas das poderosas empresas que dominam o mercado fumicultor, os códigos da infância e da adolescência precisam ser decifrados. A filha mais velha resiste ao trabalho, tem relação difícil com a mãe e quer participar do concurso de beleza Musa do Sol. Maria, a irmã do meio, é a única que frequenta a escola, porém, vive num mundo à parte, farto de informações pouco úteis para a rotina rural. Pedrinho, aos quase três anos, ainda não conseguiu falar, mas participa do cotidiano das plantações, entre as densas núvens de agrotóxicos.
Na época da colheita os dias se transformam e a família recebe a ajuda da mãe de Guerlinda, Elvira, que, mesmo com seus estímulos e sua peculiar ternura, parece incapaz de emendar a casa tomada por silêncios incômodos e perdas iminentes.
A prosa de Mariana é ao mesmo tempo corrosiva e calorosa, mas está plena de um humanismo inabalável e mostra mais uma vez que estamos diante de uma das mais talentosas escritoras da nova geração.
Lançamentos
Era uma vez em Porto Alegre (Vienense, 256 páginas), terceiro romance do advogado e escritor Isaac Menda, traz a Porto Alegre provinciana de 1935, ano da grande Feira comemorativa da Revolução Farroupilha. Ficção, fatos reais, personagens fictícios e reais como Getúlio Vargas e Flores da Cunha e tentativa de assassinato de Vargas estão na ótima e ágil narrativa.
O camelo, o burro e a água (Melhoramentos, 32 páginas, R$ 42,30), do consagrado Merli, tem projeto e ilustrações dele, numa fábula visual, sem palavras, que trata do consumo consciente de água. Camelo, consciente, e burro, desperdiçador, são vizinhos que ficam sem água. Cenas curiosas e engraçadas estão na obra.
A amiga maldita (Editora Intrínseca, 256 páginas, R$ 69,90), romance de estréia da premiada italiana Beatrice Salvioni, tem como foco a amizade de duas meninas de classes sociais diferentes. Tudo começa em 1935, num domingo de missa. Machismo, fascismo e uma tentativa de estupro estão na narrativa forte, que lembra Natalia Ginzburg, Alberto Moravia e Elena Ferrante.
E palavras
O papel do jornal impresso
Literalmente o papel do jornal impresso segue sendo o velho e famoso papel-jornal ou papel de imprensa , feito de forma mais grosseira que o papel comum, com polpa de celulose contendo algumas impurezas e apresentado para consumo em grandes bobinas que parecem papel higiênico de gigante.
Em sentido mais amplo o papel do jornal impresso (ou mídia impressa como um todo) , enquanto forma de atuação e outras características, mudou bastante depois do advento das mídias digitais. Lá pelo fim dos anos setenta, F.W. Lancaster, pesquisador britânico, um dos mais citados em ciência da informação e divulgador da “sociedade sem papel”, defendeu o fim da mídia impressa. Lancaster morreu em 2013. A mídia impressa sobrevive entreverada com os meios eletrônicos, redes sociais , dificuldades com custos de produção e impressão e etc.
Hoje todo mundo é seu próprio editor, como previu o McLuhan. Cada um diz o que quer, a hora que bem entende e onde acha melhor. Cada um edita suas verdades e mentiras e narrativas , onde fantasia e realidade dançam juntas de rostos colados.
Com tanta mídia social e antissocial, com tanta informação de velocidade leporina dia e noite , tanto som , tantas fotos e tantas versões fake e não fake, os contribuintes estão estonteados e já não sabem mais em quem ou no quê acreditar. Uns, muitos, querem acreditar no que eles já acreditam e aí escolhem plataforma e conteúdo que “legitimam” o que eles já aceitaram como verdade. Cada doido com sua mania.
Nesses tempos babélicos, barulhentos, estressados e nervosos, o jornalismo, especialmente o impresso, segue funcionando como “gate keeper” , guardião e filtro dos portões da informação .
Jornal impresso é bom de pegar, cheirar a tinta, ligar sem precisar bateria e , em dias de chuva, pode ser usado como “cobertura da imprensa” para o cara se proteger da água. Ninguém vai colocar um notebook ou um aparelho de TV na cabeça.
Décadas atrás, o pai de um amigo, o Coronel Avarino, pegava um famoso tabloide sulino e, com dois cortes de tesoura, transformava cada página em quatro e enfiava os pedaços num prego do banheiro, ao lado do vaso sanitário. Certa vez ele descobriu que o irmão do meu amigo estava gastando papel-jornal em exagero para se limpar e o advertiu com alguma severidade.
Esses dias um casal amigo , dono de um simpático cãozinho chamado Joaquim Tenório , pediu jornais velhos para o “pet” usar como sanitário. Jornal impresso serve como palmilha de galocha, protetor de piso na hora da pintura , fundo de gaiola e tapete de área de serviço em dias de chuva.
Jornal impresso novo ou velho serve também para fazer o fogo na churrasqueira ou na lareira , com a vantagem do vivente assistir a queima das manchetes dos escândalos diários, as fotos dos políticos e as tragédias sangrentas que nos atormentam.
Antigamente nos armazens e nos açougues os jornais velhos eram utilizados para embalar as compras. O sujeito saía com um pedaço de carne enrolado por vezes numa página do Correio do Povo Rural onde tinha a foto de um boi...
A propósito
Muitos até hoje pegam o jornal na porta, de manhã e vão para o banheiro, para o café e para o chimarrão curtir aquele produto elaborado com mais calma, reflexão e cuidado do que em outros canais de mídia. Será que o jornal impresso será como o teatro, o livro, as artes plásticas e outras notáveis e imortais criações humanas, que não morrem? Ah, dá para fazer artesanato com jornal velho. Escândalo de hoje se embrulha com jornal de ontem ou de hoje mesmo. Com jornal impresso fica mais físico. (Jaime Cimenti)
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