sábado, 30 de outubro de 2021


30 DE OUTUBRO DE 2021
ELIANE MARQUES

O PARAÍSO PERDIDO

Das narrativas longas sobre as quais me debrucei nos últimos tempos, considero A Autobiografia de Minha Mãe (Alfaguara), de Jamaica Kincaid, a mais incômoda. A autora faz nascer órfã a personagem Xuela, que, em face disso, se enuncia dura e vulnerável, tendo às costas, não o passado, mas um vento umbroso. Entregue pelo pai à lavadeira das roupas dele, Xuela se viu mais uma das trouxas a ser branqueada. A ênfase que ele houvesse dado à diferença entre o fardo e a filha não a alcançou ao ponto de que se humanizasse senão feito uma mancha suja na camisa do genitor, um híbrido de escocês e africano. O pai insabia lavar roupas tanto quanto insabia cuidar da rebenta. Ao fim, nenhum dos dois distinguia entre o fardo e a filha.

Já mãe de cinco ou seis antes de receber Xuela, a lavadeira Eunice Paul não era má com suas criaturas, apenas carecia de bondade. Jamais aprendera sua fórmula. De outro lado, também a criança-fardo confessava não ter amado a criadora-lavadeira. Dessabia fazê-lo. Para ela, em lugares como esses, a brutalidade se converteria na única herança cuja sobra se dava a conhecer como crueldade.

Embora admoestada para que se mantivesse afastada do Paraíso, um dia Xuela o quebrou. Para Eunice, isso foi mais do que a perda de um ente querido. Ela agarrou a bolsa densa que era sua barriga, puxou os cabelos, socou o peito; lágrimas grossas rolaram de seus olhos e pelas bochechas. A criminosa foi posta de joelhos num montinho de pedras onde o sol batia sem tréguas, cada uma de suas mãos miúdas no suporte de uma pedra grande sobre a cabeça. Xuela deveria permanecer assim até que sua boca pedisse desculpas. Filhos de Eunice atiravam nela miolos de pão e riam. Tudo quase um quadro de Debret pintado no Caribe.

Contudo, a boca criminosa se manteve fechada para a palavra desculpa ao ponto de Eunice se cansar de tanto amaldiçoar a criança e sua origem, incluídos o pai, que ela mal conhecia; e a mãe, que ela nem conheceu. O castigo se incorporou tanto à pele de Xuela com a insistência do inferno quanto a quebra do Paraíso retirou Eunice de alguma ilusão.

O Paraíso era um prato de ossos de porcelana que retratava um campo aberto, repleto de flores e de um sol que brilhava, sem arder. Suas nuvens não prenunciavam desgraça, mas felicidade. O Paraíso quebrado foi um retrato idealizado do interior da Inglaterra que Xuela ou Eunice, viventes na ilha de Dominica, sabiam da existência apenas pelo que a instituição colonizadora plantou e elas adubaram como bom e belo.

ELIANE MARQUES 

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