22 DE OUTUBRO DE 2021
DAVID COIMBRA
A infalível camisa azul
Eu tinha uma camisa azul que, quando a vestia, sempre ganhava elogio. Como era bom usar aquela camisa. Uma manhã, estava justamente vestindo-a e me olhando no espelho do apartamento em que morava, em Criciúma, e contei isso para a minha amiga Nádia Couto, que estava por ali. Ela me mandou um sorriso maroto e comentou:
- Que camisa bonita, Davizinho...Ri de volta. Gostei da ironia dela.
Quando será que me desfiz da minha camisa tão bonita? É meio trágico isso, das roupas antigas desaparecerem. Porque as roupas, às vezes, representam momentos importantes da história de uma vida. Por exemplo: tinha um amigo meu, jornalista, que morava em São Paulo. Ele era casado, bem casado até, mas um dia cedeu às tentações da carne e arranjou uma namorada. Acontece.
Pois bem. Certa tarde, ele estava na redação do jornal quando recebeu uma ligação da esposa. Ela disse que estava se sentindo mal e pediu que ele fosse encontrá-la numa determinada lancheria que os dois frequentavam. Meu amigo saiu correndo, preocupado com a saúde da ilustríssima. Encontrou-a sentada diante de uma mesinha, bebericando suco de laranja.
- Está tudo bem? - perguntou, aflito. Ela: - Está, sim. Já melhorei. Só chamei você para que falasse com ela.
- Ela quem? A mulher apontou com a cabeça para alguém atrás dele. Ele se virou e viu a namorada de pé, com os braços cruzados, olhando-o com fúria assassina.
Quando ele me contava essa história, perguntou:
- Sabe o que que eu fiz, David? - O quê? - Levantei e saí correndo.
Depois que ri bastante daquele desfecho, ele acrescentou: - Foi horrível. Até hoje lembro da calça que vestia naquele dia. Nunca mais a botei.
Aí é que está: as roupas que a gente veste narram histórias das quais somos protagonistas. Nós devíamos fazer museus das nossas roupas. Guardá-las em quadros e expô-las, talvez até permitindo visitação pública. Posso me ver guiando os turistas e dando informações de cada peça:
- Com esse Ki-Chute dei, pela primeira vez, o meu famoso drible da levantadinha. Aconteceu num dia do verão de 1977, no Alim Pedro.
- Essa cueca listradinha eu usava na noite em que fiz amor com uma morena que era minha colega na Sulina. Lembro que ela comentou: "Adoro cueca listradinha". Aquilo melhorou meu desempenho.
- Eu estava dentro dessa camisa quando fiz uma pergunta ao Pelé, numa entrevista coletiva. Não lembro da pergunta, nem da resposta, mas lembro da felicidade de falar com um homem que fez mil gols.
Seria lindo esse museu. Mas, não, não posso fazê-lo, porque minhas velhas roupas sumiram na poeira das décadas.
Agora vou dizer: de todas as roupas e calçados que tive, o que mais lamento não ter guardado foi um par de sapatos que meu avô, o velho sapateiro Walter, fez com suas próprias mãos. Há uma foto antiga em que calço esses sapatos. Ontem mesmo eu a vi e me enterneci ao deparar de novo com aquela cena da minha infância.
Eu tinha cinco anos de idade e estava sentado numa mureta, ao lado do meu avô, que fumava seu cigarro, de pé. Meu avô vestia um terno cinza e eu sentia orgulho de estar dentro dos sapatos que ele fizera. Eram sapatos pretos, elegantes, confortáveis e muito resistentes. Mantiveram-se perfeitos durante todo tempo que os usei. Só os aposentei porque meus pés cresceram. Será que minha mãe pôs fora aqueles sapatos? Que tristeza. Como queria ter ficado com os sapatos feitos pelo meu avô. Seria como ter um pedaço do amor dele aqui, comigo. Para sempre.
Nenhum comentário:
Postar um comentário