14 DE OUTUBRO DE 2021
DAVID COIMBRA
Cabeças esculpidas na pedra do monte
É óbvio que você já leu Enterrem meu Coração na Curva do Rio, de Dee Brown. Afinal, você é um leitor culto. Mas, se por acaso não leu, quero dizer que tenho inveja de você. Porque você vai sair atrás do livro agora, depois de terminar essa crônica, lê-lo hoje mesmo e, assim, experimentar a alegria de sorver uma obra-prima. Li Enterrem meu Coração... em poucos dias. Quando terminei, tinha vontade de pegar a minha Winchester e sair atirando nos ianques. E mais não direi, para não dar spoiler.
Dias atrás, voltei a falar no Dee Brown, porque o Potter me convidou para participar do podcast "Nós na História", que ele faz com o Peninha e o Arthur Gubert. Foi nesse contexto que o Peninha revelou que, quando escreveu seus livros sobre o descobrimento do Brasil, ele pretendia emular o Dee Brown. Queria ser o Dee Brown caboclo. Admite não ter conseguido, mas sou menos rigoroso ao julgá-lo. Acho que o Peninha fez um trabalho extraordinário e que você também deve lê-lo, se já não o fez.
No podcast, o Peninha citou um livro do Dee Brown que ele não tem, mas eu tenho, e não empresto, que é O Faroeste, narrando a história da formação do oeste americano.
O Peninha citou essa obra a propósito do seu último capítulo, "Teddy, o cavaleiro destemido", onde, com suave ironia, Dee Brown desmonta o mito construído em torno do ex-presidente Theodore Roosevelt. Na frase que abre o capítulo, Dee Brown já dá uma pista do que virá a seguir: "Sua cabeça de 18 metros, esculpida em granito no Monte Rushmore, nas Black Hills, estende-se sobre a sagrada terra que foi roubada dos índios".
As outras três imensas cabeças de granito, Brown cita, são as de Washington, Jefferson e Lincoln, pais da pátria. A seguir ele acrescenta: "Teria sido mais apropriado se os escultores e os que promoveram esse ?relicário da democracia? para os turistas tivessem esculpido as cabeças de Touro Sentado, Cavalo Doido, Nuvem Vermelha e outros heróis nativos do Oeste".
Brown despreza Teddy por sua propagandeada macheza, que o impelia a matar animais apenas por prazer, seu imperialismo agressivo, que submetia nações mais fracas militarmente, e seu racismo declarado, que o fazia reconhecer:
- Eu não chego a pensar que os índios bons são aqueles que estão mortos, mas acredito que nove entre 10 são, e preferia não tecer muitas considerações quanto ao décimo.
Teddy acabou sendo importante para os americanos sobretudo por sua determinação em enfrentar os grandes monopólios, mas, como se vê, pessoalmente talvez não fosse boa companhia para uns chopes cremosos.
Escrevi sobre Teddy outro dia, a respeito da expedição que ele fez na Amazônia, sob o comando do grande marechal Rondon. Naquela oportunidade, ele se deparou com um amante das nações indígenas. Rondon descendia de índios e não admitia que seus soldados atacassem os povos da floresta, nem para se defender. Seu lema era essencialmente cristão: "Morrer, se preciso; matar, nunca".
Fico tentando imaginar o que Roosevelt pensou ao encontrar aquele homem tão bravo quanto ele, melhor explorador do que ele e pacifista de uma forma que ele, valentão que era, não conseguia compreender. Como Roosevelt deve ter ficado perplexo. Mas, ao cabo daquela convivência de ímpares, o que restou foi admiração. Roosevelt escreveu o seguinte sobre esse herói brasileiro: "O positivismo do coronel Rondon era, na verdade, para ele, uma religião humanitária, um credo que o levava a ser justo, bondoso e útil aos seus semelhantes, a viver sua vida com bravura, e enfrentar a morte com não menos coragem, independentemente daquilo em que acreditava, ou não acreditava, e do que o desconhecido pudesse reservar para ele".
Não é um grande elogio, e muito maior ainda se levarmos em conta quem o deu?
Claro que é. Só que nós, brasileiros, nunca seríamos capazes de esculpir a cabeça de um Rondon, ou de quem quer que fosse, no granito de uma montanha sagrada. Como somos levianos com nossos heróis!
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