23 DE OUTUBRO DE 2021
MONJA COEN
NÃO EXISTE TERRA FIRME
Era Almirante da amada Armada. Navegava por mares nunca dantes navegados. Já vivera tantas eras que não se lembrava mais quando nascera, nem onde. Era Almirante e de branco reluzente ficava às noites brilhando tanto quando a lua cheia.
Lua tem fases e faces. Redonda, vazia, pela metade e aos pouquinhos. Lua de três dias, lua de fazer pedido. Quarto crescente, quarto minguante. Lua nova - vazia de si mesma. Como o vazio do zen.
Sempre em transformação, dependendo da situação. A narrativa da lua varia. No Japão, nela habita um coelho grandão que amassa o arroz cozido, deixando-o uma pasta. Elegia ao trabalho. Aqui no Brasil, está São Jorge matando o dragão.
No Japão, o dragão é legal, não é mal. Dragão é símbolo das águas, embora solte labaredas pela boca e voe pelo céu da nossa imaginação. Por que São Jorge, protetor de um time de futebol de São Paulo, haveria de matar, ferir, acabar com o imaginário dragão? Feras estranhas povoam as mentes humanas.
O Almirante, na proa do barco, via a lua refletida nas águas. Luz infinita, como o nome do Buda Amitaba. Havia aprendido nomes de Budas nas suas viagens ao Oriente. Se não fosse pela bússola, talvez nem se lembrasse se ele mesmo era ocidental ou oriental. Nunca se olhava no espelho. Há muito perdera sua face.
O céu estrelado. O anel em volta da lua declarava um compromisso formal. Seria casamento, aliança inquebrantável? Ou o anúncio natural de que chuva estava a caminho?
Afinal, o Almirante, embora fizesse poesia, era um homem sério. Solteiro, pois se casara na verdade com a Armada. Barcos, navios, submarinos, jangadas. Amava o mar e o movimento que o deixava sempre com os joelhos semiflexionados. Mesmo em terra firme.
Há terra firme, gente? O que significa o vulcão lá nas Canárias despejando fogo e lava? Estamos na camadinha fininha de uma bola em brasa. Tudo se movimentando, tudo vivo, sem a menor estabilidade, como os navios pequenos, os barquinhos e mesmo os maiores navios à mercê das ondas, dos icebergs, das rochas, das chegadas, das partidas, dos desastres, dos desaparecimentos e da doçura de morrer no mar.
Nunca saber o que irá acontecer. Cada instante um novo instante. Parece até história de monge zen. O Almirante amava a Armada sem esperar que ela correspondesse. Era amor de criança, dos barquinhos de papel que seu avô dobrava com o jornal já lido. Sonhava, viajava. Foram tantas idas e vindas, tantas viagens no tempo e no espaço que o Almirante às vezes duvidava se vivia na Terra ou na Lua.
Branco como a espuma que o acariciava na praia. Inerte, foi levado pela maré. O Almirante ficou gorducho, com a barriga inchada de tanta água salgada. Um pajé o viu naufragado. Fez reza, fogueira e assado. Espremeu sua barriga, tirou a farda branca e molhada. Nu, sem barco, sem lua, sem nada, o Almirante acordou e percebeu que sua amada havia armado uma cilada. Sorriu e ninguém nunca mais o viu.
No céu, a lua brilhava - cada dia de um jeito, cada hora com um formato, sem jamais se repetir. O mar virou lagoa, coberta de estrelas prateadas.
Uma história sem moral, apenas para contar que em nossa face se revelam as fases da vida. E somos todo o passado da humanidade e todo o futuro também. Entretanto, só percebemos este instante, este momento e nele toda a alegria e todo o tormento.
Só há uma solução: desarmar a amada e tomá-la em seus braços para que nunca mais arme uma cilada. Tornar-se uno com o Todo. Que a paz prevaleça na Terra. Mãe amada... Desalmada? Mãos em prece
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