23 DE OUTUBRO DE 2021
COM A PALAVRA
TODOS ESTAMOS CARENTES. TUDO É O MÍNIMO PARA COMPENSAR AS PRIVAÇÕES DA PANDEMIA
FABRÍCIO CARPINEJAR
escritor, 49 anos Poeta, cronista, ensaísta e jornalista com quase 50 livros lançados, é o patrono da 67ª Feira do Livro de Porto Alegre, que começa na sexta-feira
Fabrício Carpinejar não para. Tanto é que, em 23 anos como escritor, já publicou 48 livros - mais de dois por ano. E, para não perder o ritmo, terá um mês de outubro movimentado: além de completar 49 anos neste sábado, ele ainda está lançando Depois É Nunca (Bertrand Brasil, 128 páginas, R$ 40, em média). E marcará presença na Praça da Alfândega, a partir de sexta-feira, como patrono da 67ª Feira do Livro de Porto Alegre, título que vem para o autor apenas três anos depois de pertencer a sua mãe, a poeta Maria Carpi. O escritor teve uma jornada cheia de percalços, sofrendo um grave problema de saúde na infância, recebendo convite para sair da escola porque não conseguiria aprender a ler e a escrever e sendo vítima de bullying. Hoje, celebra a vida e diz que, após ter visitado o fundo do poço, descobriu o caminho para sair dele e apresenta o trajeto aos outros que passam pela mesma situação. Esse, segundo ele, é seu legado.
COMO VOCÊ ENXERGA O ATO DE LER UM LIVRO?
A leitura abre espaço para a solidão, para o silêncio. Ler é fortalecer a solidão, é desenvolver a capacidade de ouvir melhor depois, porque você pratica a concentração. Ler é refinar a atenção. No ato da leitura, você tem muito mais controle sobre aquilo que está sentindo. Ler tem a mesma frequência da yoga, da meditação. É aquele tempo e aquele espaço para si. E é importantíssimo, porque você vai fortalecendo a sua fantasia para o bem, não para o mal. Ao ler, você não espera o pior, você trabalha para resolver dilemas das narrativas, do conteúdo apresentado.
Por que o silêncio é importante?
O silêncio é gostar de sua própria companhia. O silêncio não é vazio, mas é visto com preconceito, como se fosse falta do que dizer. O silêncio talvez seja "eu não preciso dizer, já que o momento é tão bom". O silêncio está mais próximo da completude do que a voz. Sou muito comunicativo, mas tenho vários momentos de silêncio. E não me canso dele. O silêncio é afinação.
Com mais de 600 mil mortos pela pandemia no Brasil, qual é o significado de lançar o livro Depois é Nunca, que aborda o luto?
A morte pela covid-19 é crua, imperfeita, precária, se dá no contratempo de uma epidemia. É uma morte sem solenidade, sem velamento. É indecorosa, aflita, ofegante, escandalosa, omissa, criminosa. Você não tem o direito de chorar pelo morto, de prestar uma homenagem, de oferecer gratidão. Os mortos só serão enterrados de fato depois da pandemia. São lutos interrompidos, inacabados, malogrados. Você perdeu um ente querido e teve que fazer a despedida às pressas, sem cerimônia, sem entender como aconteceu. De repente, você tem uma ausência. Daí surgiu o livro. É como se eu tivesse oferecendo um enterro digno, decente, pelas palavras.
Sendo um observador da vida, das pessoas, dos sentimentos, como você vê a transformação do país nestes 18 meses?
Não existe transformação, mas, sim, um recuo, um medo. Existe desespero social, atrofiamento do mercado de trabalho, inflação, recessão. Ninguém se sente seguro culturalmente no país. Ninguém se sente seguro para escrever, para fazer um filme, para pintar uma tela, para montar uma peça de teatro. É um país em demolição, em ruínas. É um país em que museus queimam, florestas queimam, arquivos queimam. O fogo tem mais espaço neste país do que o intelectual.
Você fala muito sobre a importância do abraço, do afeto. Como imagina que a diminuição da troca de carinho vem afetando as pessoas?
As pessoas estão absolutamente carentes. Elas se desacostumaram com o abraço, as confissões, partilhar as suas dúvidas, confiar no outro. Será uma reaprendizagem coletiva. Todo mundo está à flor da pele sem ter onde florescer. O espaço reduzido, com seus sonhos encolhidos, todo mundo que tinha uma viagem programada, um casamento para fazer, um negócio, foi obrigado a recuar. Agora, o que você espera? Tudo! Espera por reciprocidade, adesão, simpatia, colo, cafuné. Tudo é o mínimo para compensar tantas privações desse período. Não dá mais para ficar de cara amarrada, rabugento.
E esse processo vai ser simples?
Não. Vai precisar de paciência, de tempo. Não tem como ter um encontro fortuito, um encontro rápido, breve. As pessoas estarão querendo desabafar, que o seu sofrimento seja reconhecido. Acabou a disputa de quem sofreu mais. Não dá para fazer isso. Não dá para fazer uma gincana do sofrimento. Temos que procurar outra perspectiva, outra gincana: quem pode ajudar mais?
Todo mundo sofreu de alguma maneira na pandemia. Como deixar a dor de lado para entender o outro?
Só tem um único jeito: celebrando a presença, agradecendo. A gratidão de estar presente ali. Não em outro lugar, mas ali. É entender a importância do encontro. É não ficar pela metade. É não mais estar onde o afeto não domina. É ser fiel ao agora. Ser leal ao agora. É o único jeito. Agradecer ao fato de termos novamente uma Feira do Livro presencial. É ter a noção do que significa essa retomada, não procurar anormalidades. Respeitar a grandeza da resiliência. Não tem mais como adiar, não tem mais como dizer "depois nos vemos" ou "vamos marcar um café". Não! Quer tomar um café? Toma agora. Não existe mais o gerúndio, ele morreu.
Hoje em dia, muitas vezes, a sensibilidade é tida como fraqueza, atacada com deboche. Como você vê isso?
Há um culto à aparência, ao orgulho. O orgulho é prejudicial ao amor. Ele não admite nunca que está errado. Quem não chora vai acabar chorando no meio do riso, vai inverter seus sentimentos. Vai viver pelo avesso. Vai rir de nervoso, vai amar odiando. A honestidade é vulnerabilidade. Quando mais vulnerável você for, mais será autêntico, porque você estará aceitando a sua imperfeição. Não vai mentir. Quem mente é quem não quer se emocionar. Começa a mentir sobre o que está sentindo, e as mentiras se alastram para outros setores da vida, porque a pessoa está disfarçando sua própria natureza, enganando a si mesmo. Falo o que sinto pontualmente, e isso me tira o peso do ressentimento, das mágoas, as âncoras da culpa. Assumo quem sou, com meus defeitos e minhas virtudes. Se você não se abre para a vulnerabilidade, nunca vai encontrar pontos de conexão com o outro. Nunca vai ter empatia.
como você aprendeu isso?
Minha mãe tinha o hábito de costurar minha roupa enquanto eu a vestia. Eu tentava tirar a camisa, que havia perdido um botão, e ela dizia: "Não, fique aí". E, naquele momento em que ela costurava, eu aprendi a ficar quieto. Mas minha mãe não fechou meu corpo, ela o abriu ao afeto. Quando ela costurava, em seu banquinho de madeira à minha frente, dizia: "Abre-se para o afeto. Aprenda a ficar próximo do outro. Fique rente". Ela encurtava as distâncias com esse gesto. E, talvez, o abraço seja uma costura. A gente nem repara em como os gestos são simbólicos, quanto a gente precisa se emocionar para lembrar. A emoção que torna cada fase inesquecível. Se não tem emoção, esquecemos.
Escolhido patrono da Feira do Livro e lançando novo livro. o que não vai faltar é emoção nos próximos dias...
Ser o patrono da Feira é a maior consagração literária que existe no Estado, o maior prêmio que eu recebi em vida. Porque é uma representatividade, não é um troféu por um livro. É um prêmio por um conjunto entre pessoa e obra. E eu não vejo sentimentos vedados. Na Praça, estará o Fabrício com todos os seus sentimentos. Se eu tiver que chorar, vou chorar. Se tiver que rir, vou rir. Se eu tiver que falar sério, vou falar sério. Se tiver que fazer piada, vou fazer piada. Todas as estações estarão embaralhadas na minha personalidade. Mas o que posso garantir é que estarei de alma na Feira. Roupa de domingo em todos os dias. O patrono é uma alma coletiva. Eu diria que estou vivendo a exuberância do arrebatamento. Tanto com o Depois É Nunca quanto com o patronato, me sinto útil. Sei que tenho algo a dizer.
E a responsabilidade de ser escolhido para o posto de patrono três anos depois de sua mãe?
Talvez eu seja patrono porque tive um cabo eleitoral forte (risos). E que cabo eleitoral! Esse ninguém nunca teve. Com mãe e pai autores, sempre tive a consciência de que eu era o terceiro melhor escritor dentro de casa (risos). Não era nem no bairro, nem na cidade, eu já saía perdendo dentro de casa. Tenho maior orgulho dos meus pais e de tudo o que eles já escreveram. Sou leitor deles. Quando você tem pais escritores, pode pensar: "Ah, já sei tudo o que eles falam". Não é. Leio sempre com surpresa, com arrebatamento. Sempre vendo o quanto eu ainda não conheço os meus pais. O amor depende da curiosidade. Quando falamos "eu te conheço de cor", você está, sem querer, assassinando o amor. Porque amor é "eu te desconheço a cada dia".
Como foi a conversa com a sua mãe após o anúncio de que você é o patrono?
Pela primeira vez, vi minha mãe conseguindo guardar segredo. Ela já devia saber antes... Porque mãe costuma dar pistas, aquelas pistas genéricas diretas como "vai acontecer algo de bom na tua vida". Mas não. Minha mãe conversava comigo como se não fosse acontecer nada. E ela ficou eufórica, chorou. Imagino o que passou pelo coração dela, que foi aquela pessoa que confiou em mim, apesar de todas as adversidades e as advertências de que eu não aprenderia a ler e a escrever. Ela deve ter tido um flashback violento, pensando "eu estava certa, eu fiz o certo".
Nesta época de efemeridades, em que as pessoas fazem sucesso hoje e caem no esquecimento amanhã, como você se mantém relevante?
O tempo interior é diferente do tempo físico. Você deve se preocupar é com o tempo interior. As alegrias são efêmeras se você depende de alguém para concretizá-las. Falo que é a ciência do restricionismo, que atinge todos os lares. Ou você é vítima ou você a pratica. Você vai contar uma novidade, feliz, e a pessoa coloca um porém, uma restrição. Você não consegue comemorar seus feitos com quem mais ama. E você fica sempre com a festa frustrada, pois colocou todas as suas expectativas no reconhecimento alheio. O que recomendo para combater a efemeridade das alegrias é: comemore por sua conta. Não meça sua alegria pelo aplauso do outro.
É isso, então, que te mantém cativante?
Sim. Eu comemoro um cálice de vinho, um bom livro, cada pequena delicadeza da vida. Somos terrivelmente influenciáveis, porque somos carentes de reconhecimento. E isso faz com que sabotemos nossas conquistas. Não existe consenso. Não existe autenticidade em um consenso, ele é uma idealização. O que eu não posso é me cancelar. Você não pode se cancelar. Da mesma forma que o público está vaiando, dependendo do que você faça, em seguida ele estará aplaudindo. Não entendemos toda essa metamorfose em que estamos envolvidos. Somos fases, períodos. Você acha que a sua vida acabou? Não acabou. Acabou um ciclo que vai permitir a reinvenção mais adiante.
VOCÊ COMEÇOU A CARREIRA COMO POETA, PUBLICOU LIVROS QUE FORAM BEM RECEBIDOS E, EM CERTO MOMENTO, DESCOBRIU A CRÔNICA, GANHANDO MAIS POPULARIDADE. COMO VOCÊ VÊ SUA RELAÇÃO COM A POESIA? ELA ESTÁ NAS SUAS CRÔNICAS?
A crônica é uma conversa. A poesia é um monólogo. A crônica tem as hesitações, as incertezas, as dúvidas, como se você estivesse conversando com alguém. A poesia é uma conversa consigo mesmo. A poesia é a minha densidade. A crônica é a minha extroversão. As duas se comunicam, mas são personalidades diferentes. Na poesia, eu descubro o que nem sei. Na crônica, reparto o que sei. A crônica eleva as banalidades, é o sublime do simples. A poesia é o essencial, é o osso, é o que ficou, é a herança. São Fabrícios diferentes. Agora, conversando contigo, não sei se estou sendo poeta ou cronista, não sei quem assumiu o comando (risos).
SOMANDO SUAS REDES SOCIAIS, VOCÊ TEM MAIS DE 3 MILHÕES DE SEGUIDORES, QUE INTERAGEM, TRAZEM PROBLEMAS, SE ABREM. COMO É ESSA TROCA?
Há cumplicidade. Não há um moralismo, não me coloco em uma posição superior para dar conselhos. Estou no mesmo patamar, no mesmo degrau. Cito tudo o que aconteceu na minha vida, de extravio, de tombo, de queda. E isso vai criando uma familiaridade. Falo que são aqueles palpites de amigo. Não sou terapeuta, nem psicanalista, nem psiquiatra. Sou um amigo das palavras. Posso ouvir bem. Ao desabafar, você já está organizando o que está sentindo. O desabafo é o princípio da cura.
DESDE 1998, VOCÊ SOMA 48 LIVROS PUBLICADOS. É UM NÚMERO QUE MOSTRA UM RITMO DE PRODUÇÃO INTENSO. COMO CONSEGUE ESCREVER TANTO?
Passei toda a minha infância e parte da minha adolescência quieto. Eu só destravei (risos). Eu tinha uma caixa d?água de fantasias, de histórias, de causos. E minha mãe costuma dizer: "Eu alfabetizei o Fabrício com poesia, e deu no que deu". É que tem grande parte da minha produção que é desconhecida, que é a produção infantojuvenil. Os livros infantis não recebem críticas, não têm o mesmo reconhecimento dos de adulto. Torna-se muito mais possível publicar dois livros por ano sendo um infantil e um adulto.
você Pretende diminuir o ritmo agora que está chegando aos 50?
Faço 49 anos neste sábado, e nem no meu aniversário posso reinar sozinho, porque divido a data com o Pelé (risos). Mas, para diminuir o ritmo de produção, é só não me confinar em casa por dois anos de novo. Vou estar gastando parte do tempo viajando, namorando. Não me tranquem mais em casa, por favor!
HÁ UM CANSAÇO GENERALIZADO.
Sim! Duvido que quem ficou trancado em casa nesses dois anos não ficou com vontade de trocar o sofá, o colchão, a mesa. Você enjoa de tudo o que tem.
TEVE GENTE QUE TROCOU DE COMPANHEIRO, DE COMPANHEIRA...
Aqui isso não aconteceu (risos). Longe disso. Cada vez, eu fico mais apaixonado pela Beatriz. Isso é intocável. Até porque a Beatriz muda todos os dias. Ela é sempre outra pessoa. Mas a casa envelheceu o dobro nesse tempo para todo mundo. Minha sensação é de que moro no mesmo apartamento há um século.
VOCÊ REALIZA OFICINAS QUE PROMETEM CURAR PESSOAS A PARTIR DA ESCRITA. COMO?
Todo mundo deve, diariamente, escrever à mão. Sua memória se fortalece quando você escreve à mão, tudo vira um conhecimento mais portátil. Escrever à mão funciona como uma espécie de catarse. Você se previne da precipitação, da pressa ou do arrependimento por algo que disse. A escrita curativa não é para escritores. A gente precisa terminar com esse elitismo. Todo mundo deveria escrever, sem exceção. Triste do longo casamento em que as duas pessoas não conhecem a letra um do outro. Quando você escreve, tem um tempo, um espaço para si. Uma espécie de esconderijo, fortaleza.
Escrever torna as pessoas melhores?
Muito! E vão se livrar de enrascadas, de encrencas, de dedo podre, de padrão repetitivo, da obsessão, vai atracar a ansiedade. Porque você tem que escrever, não importando como. Não corrija aquilo que você está escrevendo. Escreva como higiene mental, como higiene interior. Você vai qualificar seus diálogos. Você também não vai ser tão carente. Como você se escuta, se conhece mais, confia mais em si e não será tão dependente dos demais.
você escreve frases em guardanapos, e elas fazem muito sucesso entre os seus seguidores. Por que escolheu esse objeto tão simples e que tem o objetivo final de ir para o lixo como ferramenta?
Escolhi o guardanapo porque eu sempre me senti um. Sempre fui ridicularizado por ser feio, por não ser simétrico, fotogênico, ter dificuldade de aprendizado. Eu me sentia um guardanapo diante do bullying. O guardanapo é aquilo que será descartado, posto fora. É aquilo que você usa, amassa e joga no lixo. Aquilo que tem uma serventia passageira. Ao escrever meus aforismos no guardanapo, estou também me salvando. Porque, depois que tem uma frase no guardanapo, você não joga mais fora. É como se começasse uma vida espiritual com as palavras.
Se você pudesse mandar uma mensagem em um guardanapo para o Fabrício de 30 anos atrás, que estava ingressando no curso de jornalismo, o que estaria escrito?
Você vai perder os seus cabelos (risos).
E para o Fabrício que está 30 anos no futuro?
Os cabelos não fazem nenhuma diferença (risos).
CARLOS REDEL
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