03 de fevereiro de 2014
| N° 17693
LIBERATO VIEIRA DA
CUNHA
Vila Manresa
Uma colega de ofício, muito amiga
de festas – a alegria é aliás sua primeira natureza –, conta que vai passar o
Carnaval que aí vem em um retiro espiritual.
A insólita revelação me provoca
uma torrente de lembranças. Estudei num colégio em que, todos os anos, os
alunos eram convocados, com sólidos argumentos baseados na instabilidade das
notas de Religião, para essa piedosa prática. Da primeira série do Ginásio à
última do Clássico e do Científico, poucos escapavam do recrutamento.
O local da reclusão compulsória
era a Vila Manresa, que a gente alcançava pela Estrada dos Alpes. Não sei se
uma ou outra ainda existem. Recordo bem que, lá de cima, a vista de Porto
Alegre era esplendorosa. No enorme edifício havia quartos individuais, um
grande refeitório, uma capela de proporções e, ao centro da mata nativa, uma
piscina de água corrente.
Durante três ou quatro dias, um
daqueles jesuítas formados em Louvain ou Liège nos recordava que para ser
católico não era necessário apenas uma certidão de batismo. E então se
aprofundava nos mistérios de uma Igreja pré-conciliar e certamente muito
distante, senão oposta, à que fundaram João XXIII, João Paulo II e o Papa
Francisco.
Nos almoços e nos jantares a
comida modelo hospital era acompanhada de leituras. De alguma forma, o leitor
conseguia terminar um livro inteiro. Todos no mais completo silêncio (em um
retiro não se falava) ouviam de repente referências ao Jungfrau ou ao
Matterhorn, montanhas que eu só iria conhecer décadas depois, como se ficassem
ali perto. E por vezes deslizava surrealmente, por entre aquelas geleiras, o
Rio Zambeze que, como você sabe, é da África.
Os personagens, salvo em O
Escândalo dos Kotzkas, no qual não acontecia qualquer escândalo, trocavam
impressões sobre a ameaça de guerra. Mesmo na adolescência, dava para eu perceber
que aquela guerra era a Segunda, o que demonstrava a provecta idade das obras
escolhidas.
Uma noite, um dos pregadores
acendeu uma vela dentro de uma caveira para discorrer com adequado cenário
sobre o Inferno.
Na saída, dei uma espiada naquele
quadro em que o Pecador joga xadrez com o Diabo, com evidente vitória deste.
Quem disse que dormi depois, ainda que todos os meus pecados de então se
resumissem em matar a missa em algum domingo de futebol?
Não sei como serão os retiros de
hoje, minha amiga. Mas leve um celular e muito especialmente não perca o seu
sorriso.
Pois mais vale uma balada do que
todos os escândalos dos Kotzkas.
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