segunda-feira, 2 de dezembro de 2013


02 de dezembro de 2013 | N° 17632
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA

Com Quintana em Berlim

“O tempo é a insônia da eternidade.”

Essa frase não é minha. É de Mario Quintana, e tão esplêndida em sua símplice nudez que um escocês de ascendência italiana, Giovanni Pontiero, resolveu traduzi-la para o idioma da duquesa Kate Middleton.

Quando eu estudava em Berlim e não conseguia dormir, a recitava como um acalanto: “Time is the insomnia of eternity”. E então iam me pesando os olhos e eu pensava não na duquesa Kate, que nem havia nascido, mas em todos os pequenos, grandes acontecimentos de que se construíam à época meus dias, e ia adormecendo assim como quem resvala, tímido, em um vórtice.

Mas tinha vezes em que não conseguia dormir e aí acompanhava a respiração da deusa nórdica que sonhava ao meu lado – e isso me dava uma certa sensação de culpa, como se Deus me tivesse surpreendido em pecado. Pensava por um momento em gastas fórmulas de arrependimento que tinham me ensinado quando menino, mas então dizia baixinho para mim mesmo:

A teologia é o caminho mais longo para chegar a Deus.

Era outra vez Quintana em meu pensar, era outra vez Pontiero: “Theology is the most roundabout way of reaching God”.

Explico: por uma conspiração dos arcanos, vivendo na Alemanha, tinha dias em que eu praticamente só falava inglês, com meus amigos, com meus colegas, com meus professores, com minhas amadas. Usava o alemão só para pedir um prato num restaurante de Kurfürstendamm ou de Kreuzberg, para indagar um endereço, enfim, para as coisas triviais da existência – e isso se repetiu em ocasiões diversas, pois não estudei apenas uma vez em Berlim.

Até as insônias, como entreguei no começo, eram em inglês. Eu ficava bem quieto, procurando imergir em inconsciência, ouvindo o pulsar dos segundos, e escutava Quintana:

Esse tic-tac dos relógios é a máquina de costura do Tempo a fabricar mortalhas. E vinha Pontiero: “This ticking of clocks is the sewing-machine of Time making shrouds”.

Mortalhas? Não me ligava muito nisso. Não pensava no Lado de Lá, a não ser no que ficava logo ali, transpondo o Muro, tão sombriamente fascinante. Não cogitava ir além, jamais, da tênue fronteira da vida. A vida era bela, e mesmo assim havia mais compensações:

Não sabias? – perguntava Quintana. – As nossas mortes são noticiadas como nascimentos pela imprensa do Outro Mundo. Didn’t you know? – confirmava Pontiero. – The newspapers announce deaths as births in the Other World.


Enquanto isso, ao meu lado, do lado de cá de minha segunda juventude, sonhava aquela deusa nórdica que nunca mais vi.

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