sábado, 3 de dezembro de 2011



03 de dezembro de 2011 | N° 16906
PAULO SANT’ANA


O clarim do Coreia

Quando eu era garoto, nas cercanias dos quartéis da Brigada Militar, no Partenon, havia um grande tocador de clarim, um soldado da Brigada Militar, apelidado de Coreia, que talvez ainda exista.

Era estupendo ouvir o clarim do Coreia, à frente do regimento. Parecia um clarinete, de tão suave.

Quando eu, sorrateiramente, como menino, assistia aos desfiles da tropa, configurava no clarim do Coreia uma cena que assistia aos domingos de matiné do cinema, num filme épico chamado Gunga Din.

A tropa no cinema, sob o comando de Gunga Din, avançava sobre uma planície em direção à devastação dos adversários, enquanto soava o clarim encorajador de seus combatentes.

Não sei se na Brigada Militar ou no Exército ainda se usa hoje o clarim como estandarte musical das manobras, o que sei é que não me sai dos ouvidos e da memória a cálida lembrança da melodiosa fanfarra do clarim do Coreia.

Meu pai, que se chamava Ciryllo Sant’Ana, naquela época tenente da Brigada Militar, certa vez foi escolhido pelo então governador Walter Peracchi de Barcellos para a função de chefe da disciplina da Casa de Correção, a masmorra que servia de presídio à cidade, na Volta do Gasômetro.

Meu pai foi escolhido porque abundavam os assassínios entre os detentos da Casa de Correção.

Lembro-me de que foi dada carta branca ao meu pai para que escolhesse entre os brigadianos os mais fortes e os mais bravos para enfrentar os desatinos violentos dos presidiários.

Modéstia à parte, meu pai, que como soldado foi premiado com a distinção de “ato de bravura” na Revolução de 1932, quando em combate em São Paulo, o que consta nos registros da BM, era um homem forte e destemido.

Ele penetrava nas temidas galerias da antiga Casa de Correção sozinho e desarmado, enfrentava os detentos com uma coragem invulgar. Por isso foi apelidado pelos presidiários de Touro Hosco.

De dois soldados da tropa de elite que meu pai convocou para ajudá-lo a moralizar o presídio, ainda lembro como eram chamados: Nélson Campos, que foi campeão brasileiro de box, e um que era apelidado de Curitibano, grande atleta de maratona.

Era tão absurda a hegemonia dos detentos sobre o presídio, daí por que foi chamado meu pai para reprimi-la, que quando aniversariava o mais famoso bandido preso, o Sete Dedos, que perdera três dedos em luta contra a polícia, esse meliante famoso realizava dentro do presídio uma festa em que havia um bolo no centro de uma grande cela, que era partido em fatias pelos presos, todos portando facas em suas mãos.

Meu pai chegou à Casa de Correção com esse clima.

Modéstia à parte, nos dois anos em que papai presidiu a disciplina no famoso presídio, jamais aconteceu qualquer assassinato de presos, eles que morriam assassinados à mancheia no período anterior à administração de meu pai.

Talvez seja por isso que, até quando eu era exclusivamente cronista esportivo, tecia comentários sobre a situação penitenciária gaúcha.

E me orgulho de em todos os meus comentários, até hoje, sempre deixar bem claro os direitos humanitários que se deve reservar aos presos, tanto que muitos leitores me interpretaram mal, achando que preso bandido tem de sofrer e morrer e eu ficava a defendê-los nos meus espaços.

Mas meu pai aplacou com jeito e maestria o instinto de crueldade dos presos mais perversos.

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