sexta-feira, 31 de dezembro de 2010



31/12/2010 e 01/01/2011 | N° 16566
NILSON SOUZA


Fábulas de 2010

Acabei de ler A Espécie Fabuladora, de Nancy Huston, que começa com a instigante pergunta de uma presidiária à escritora canadense: “Para que inventar histórias quando a realidade já é tão extraordinária?”. A resposta é o livro – e é imperdível. Não vou estragar o prazer de ninguém revelando o seu conteúdo.

Só peguei a pergunta como gancho para repassar nesta crônica o ano extraordinário que está terminando. Basta uma revisão superficial para constatarmos acontecimentos mais fantásticos do que em qualquer ficção.

Os terremotos também matam anjos, descobrimos logo nos primeiros dias, quando a terra tremeu no Haiti e os prédios desabaram sobre a nossa missionária da paz e das crianças desnutridas, a catarinense Zilda Arns. Depois, o Chile também tentou sair do lugar, sepultando centenas de pessoas.

Em seguida, aquele vulcão islandês que consome no nome todas as consoantes do alfabeto cobriu a Europa de fuligem, interrompendo as estradas do céu. Tão logo foram desobstruídas, um avião com 104 passageiros estatelou-se no Líbano – e dos destroços de ferro e fogo ressuscitou um menino holandês de nove anos, único sobrevivente deste enredo fantástico escrito pela realidade. E era só o começo.

É segredo, cantou a Unidos da Tijuca em seu enredo – e, num passo de mágica, em plena passarela, sem que a multidão percebesse, trocou a roupa das meninas bailarinas.

Enquanto a Espanha dava show de bola na terra de Mandela, mister WikiLeaks contava ao mundo que as tropas americanas não só detonaram civis no Afeganistão como também deixaram tudo registrado em documentos secretos. De repente, todos nos demos conta de uma nova realidade: não há mais segredo na era do iPad.

Mas ainda há muita intolerância. O Prêmio Nobel da Paz vai para... o chinês Xiaobo, inofensivo poeta, que apodrece numa prisão da ditadura porque ousou assinar um manifesto em favor de reformas democráticas em seu país.

Ano de contrastes, este: enquanto uma mulher é condenada à morte por apedrejamento, outra sai da clandestinidade para entrar na História do Brasil, pela rampa do Palácio do Planalto. Há, sim, luz no fim do túnel do obscurantismo. A ela chegaram, depois de 77 dias de sepultamento em vida, 33 mineiros chilenos, protagonistas do mais emocionante resgate dos nossos dias e, provavelmente, de todos os tempos.

Chega ou precisa mais?

O ano confirmou a dúvida da presidiária: para que inventar histórias?

Well, chegamos ao último dia de 2010. FELLIZ ANO NOVO. Que em 2011, aconteça a realização de todos os seus sonhos.


31/12/2010 e 01/01/2011 | N° 16566
PAULO SANT’ANA | LUCIANO PERES


Histórias de sobreviventes

O assunto já foi tema de incontáveis reportagens em 2010, eu sei, mas me dou o direito, neste final de ano e início de 2011, de voltar a falar do histórico resgate dos mineiros chilenos, porque se trata, claro, do drama mais surpreendente, mais emocionante dos últimos tempos. Histórias de sobreviventes me fascinam.

É impressionante a capacidade do ser humano de encontrar soluções quando se vê confrontado pelo espectro da morte, quando encara um aparente beco sem saída. De buscar forças em algum canto escondido do corpo e do cérebro. Se a engenhosidade é um dos traços marcantes da nossa espécie, é nessas situações que ela brilha com mais força, uma supernova no céu estrelado.

Isso tudo veio a minha mente não só devido aos mineiros, mas também por causa do livro que estou lendo, sobre outro drama no mesmo Chile, 38 anos atrás, em 1972. Milagre nos Andes, do uruguaio Nando Parrado, relata o acidente com um avião nas montanhas nevadas da fronteira chileno-argentina.

O episódio é bem conhecido, até porque inspirou filmes: avião cai nos Andes; sobreviventes esperam, cada vez mais desesperados, o resgate que nunca vem, em meio ao ar rarefeito e a um frio glacial; resolvem comer a carne dos mortos no desastre, para não padecer de fome; e, finalmente, um pequeno grupo, incluindo o próprio Parrado, decide enfrentar a quase impossível tarefa de escalar os imensos picos e buscar ajuda.

Menos conhecidos são os detalhes que garantiram a sobrevivência de 16 dos passageiros – o avião levava 45 pessoas, contando a tripulação, mas muitos morreram já na queda ou nos dias seguintes, devido a ferimentos graves. São aquelas pequenas explosões de engenhosidade que representam a diferença entre a vida e a morte. Um dos sobreviventes, Fito Strauch, por exemplo, descobriu que as almofadas dos assentos do avião, amarradas aos pés com cintos de segurança ou fios elétricos, permitiam caminhar na neve fofa e profunda com mais facilidade.

Outro passageiro, Marcelo Pérez, salvou a todos ao, sabiamente, montar com poltronas, malas e neve uma parede improvisada para tapar o rombo na fuselagem do avião. Não fosse por ele, todos teriam perecido de frio já na primeira noite nas montanhas geladas. Acabaram permanecendo 72 dias nas alturas dos Andes – curiosamente, os mineiros chilenos ficaram mais ou menos o mesmo tempo sob a terra, 69 dias.

Presos a cerca de 700 metros de profundidade na mina San José, depois que desabamentos bloquearam o caminho para a superfície, os mineiros, ao contrário dos sobreviventes dos Andes, não tinham como buscar ajuda por conta própria.

Na verdade, até tentaram – um grupo procurou uma saída alternativa nos túneis, mas teve de recuar devido ao risco de novos desabamentos e de piorar ainda mais a situação. No caso dos mineiros, a engenhosidade se refletiu mais nas pequenas decisões tomadas para manter os 33 vivos até uma comunicação com o mundo exterior, como racionar zelosamente a comida.

Em fevereiro, deve estrear no Brasil um filme que conta outra história fantástica – e real – de sobrevivência. 127 Hours, dirigido por Danny Boyle e possível candidato ao Oscar, relembra o drama vivido pelo americano Aron Ralston em maio de 2003. Enquanto praticava montanhismo em um cânion no Estado de Utah, sozinho, ele ficou com o braço direito preso sob uma rocha que desmoronou.

Com pouca água e comida e incapaz de se soltar sem ajuda, dependia, para sobreviver, de um improvável acaso, ser encontrado por outra pessoa no meio do nada. As 127 horas do título dizem respeito aos pouco mais de cinco dias que Ralston – interpretado no filme pelo ator James Franco – levou para tomar a decisão terrível que salvaria sua vida: cortar fora a parte inferior do braço direito e se libertar da rocha.

Fico pensando se, na mesma situação, eu teria a coragem e o sangue-frio para fazer a mesma coisa. E você? Aliás, teria eu coragem, em uma situação semelhante à dos sobreviventes dos Andes, de recorrer ao canibalismo, um tabu milenar, uma ideia cuja simples menção revolta o estômago e a mente?

No final das contas, talvez seja impossível dar uma resposta a essas perguntas em termos hipotéticos. Talvez uma resposta verdadeira só surja em situações-limite, como as vivenciadas pelos uruguaios acidentados nos Andes, pelos mineiros do Chile e pelo americano Aron Ralston.


31/12/2010 e 01/01/2011 | N° 16566
DAVID COIMBRA


Prezada leitora

A presidente da República é minha leitora. Foi ela quem disse. Duas vezes. Antes de ser entrevistada no Painel RBS, meses atrás, estendeu-me a mão e falou:

– Gosto muito do que você escreve.

O pessoal em volta: – Óóó...

Terminado o programa, levantou-se e:

– Realmente, gosto do que você escreve.

– Óóóóóó...

Sei que candidatos dizem coisas para nos agradar, mas ela parecia sincera. Se foi, vou aproveitar para fazer-lhe um pedido. De quem escreve para quem lê. Ei-lo:

“Prezada leitora Dilma:

Já que a senhora me lê, suponho que conceda alguma importância para a minha opinião. Então, vou lhe dar uma opinião. Que não é só minha, já foi sua, não duvido que ainda seja. Ao menos era a do líder do seu antigo partido, Leonel Brizola, e de um homem que, sei, a senhora respeitava, Darcy Ribeiro.

É o seguinte: na sua gestão, que ora se inicia, não dê importância para os adultos. Eles não têm mais jeito. Dê importância para as crianças.

Uma ilustração tosca: li que o Brasil gastou R$ 2 bilhões no programa de alfabetização de adultos em 2010. Sabe quanto deveria ter sido gasto? Nada. Todo esse dinheiro tinha de ser aplicado na educação das crianças. Dinheiro posto no adulto é dinheiro desperdiçado.

O ProUni. As quotas nas universidades. A Bolsa Família. Tudo isso é bom; nada disso seria necessário, se houvesse investimento nas crianças. O Brasil não precisaria de novos presídios, se houvesse investimento nas crianças. A RBS não teria de fazer campanha contra o consumo do crack, se houvesse investimento nas crianças. A corrupção não seria tão voraz, se houvesse investimento nas crianças.

A senhora será uma presidente desenvolvimentista, sabe-se. A senhora foi a “mãe do PAC”. Seu antecessor, o já ex-presidente Lula, disse esperar que o Brasil se torne a quinta economia do mundo em cinco anos. Desenvolvimento é uma coisa boa, o país ter economia forte é uma coisa boa. Nenhuma coisa nem outra são as coisas mais importantes.

As coisas mais importantes não são coisas. São pessoas. Muitos dos países que não estão, nunca estiveram e jamais estarão entre as maiores economias do mundo são países melhores de se viver do que o Brasil. Escócia, Coreia do Sul, Bélgica, Suíça e tantos, tantos mais. Quase todos esses países investiram nas crianças, que se tornaram adultos dignos, que fizeram desses países lugares em que se vive com dignidade.

A senhora pode mudar de verdade o Brasil. Não uma mudança material, de fora para dentro. Uma mudança espiritual, de dentro para fora. Uma economia forte pode se tornar fraca, um país desenvolvido pode se tornar atrasado. Mas pessoas a quem se deu dignidade não perdem a dignidade. E a dignidade vem com a educação básica. Com o investimento nas crianças.

As crianças. Pense nas crianças.

Esse o meu pedido. Não deixe de me ler, presidente”.


31/12/2010 e 01/01/2011 | N° 16566
CLÁUDIA LAITANO


O “U” da felicidade

A edição especial de Natal da sisuda publicação britânica The Economist estampa na capa um saltitante Papai Noel e a manchete: “A alegria de envelhecer (ou por que a vida começa aos 46)”. Como eu completo 45 este ano, fiquei especialmente interessada.

Se a vida começa aos 46, pensei, 2011 será o intervalo antes da segunda parte do filme (de longuíssima metragem, espero) – aquela hora em que todo mundo levanta para esticar as pernas, fazer xixi e checar as mensagens no celular. Já em 2012, tudo pode acontecer, inclusive o mundo acabar, o que seria uma enorme injustiça com todos nós que íamos começar a viver justamente ali, onde a profecia maia e um filme-catástrofe instalaram um cataclismo.

O tema da reportagem não é o envelhecimento em si ou uma nova técnica de cirurgia plástica que vai permitir que Susana Vieira interprete a própria neta na próxima novela das oito, mas um assunto que tem atraído cada vez mais pesquisadores de diferentes áreas: a felicidade. Todo mundo tentando entender o que, afinal, faz uma pessoa, uma família, uma empresa ou mesmo um país mais feliz do que o outro.

A felicidade, porém, não é uma ciência exata. Países ricos, por exemplo, tendem a ser mais felizes, mas a correlação entre dinheiro e felicidade nem sempre é linear – confirmando a tese de que fatores culturais desempenham um papel importante na percepção de felicidade.

Europeus e norte-americanos estão próximos, e os latinos vêm logo em seguida, mas o melancólico Portugal se distancia do grupo. Asiáticos são bem menos felizes do que escandinavos (os mais contentes), e o sofrido Haiti anda perto da Bulgária, o lugar mais triste do mundo na relação entre renda e felicidade.

Aparentemente, a distribuição de felicidade ao longo das diferentes fases da vida às vezes também contraria o senso comum. A imagem de jovens de 30 anos cheios de energia e contentamento convivendo com pais ou chefes de 60 ou 70 amargurados com as rugas e os limites da idade é contestada pelas pesquisas apresentadas na reportagem.

A felicidade, dizem esses estudos, desenha uma curva em U: somos muito felizes na juventude, mas os compromissos da vida adulta (amores, carreira, filhos...) vão roubando nossas energias até chegarmos ao “fundo do U”, que, em média, chega por volta dos 46 anos (olá, desgraça!). Dali em diante, o inesperado acontece: a vida fica melhor.

Pessoas mais velhas tendem a evitar bate-bocas, já aprenderam a controlar suas emoções e a aceitar melhor o que dá errado e são menos propensas a acessos de raiva repentinos.

A capacidade, que só os humanos têm, de reconhecer a própria mortalidade e de monitorar o próprio tempo no horizonte faz com que os mais velhos se concentrem no presente e no que é essencial, deixando de sofrer por bobagem ou por aquilo que não tem conserto – e é mais ou menos até aí que vai o que a gente entende por felicidade.

Portanto, em 2011, faça como sua vó: desencane e trate de ser feliz.

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010



30 de dezembro de 2010 | N° 16565
SOB NOVA DIREÇÃO


Gaúcho que atuava em SP chefiará a Polícia Federal

Superintendente em São Paulo, Leandro Daiello Coimbra venceu disputa com outro nome gaúcho

O atual superintendente da Polícia Federal de São Paulo, Leandro Daiello Coimbra, será o diretor-geral da Polícia Federal. Natural de Porto Alegre, Daiello disputava a indicação para o cargo com Ildo Gasparetto, superintendente da PF no Rio Grande do Sul, e Roberto Troncon Filho, diretor de Combate ao Crime Organizado. A indicação foi anunciada pelo futuro ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo.

Pouco antes do anúncio oficial, às 13h30min de ontem, o telefone do Gasparetto tocou. Do outro lado da linha, Daiello, também delegado, também superintendente regional, também gaúcho e, como Gasparetto, também cotado para assumir o cargo máximo da instituição.

Amigos de longa data, Daiello e Gasparetto comemoram o fato de serem os principais nomes cogitados para o cargo, trocaram confidências e, após 15 minutos de conversa, firmaram um pacto.

– Acertamos de um ligar para o outro assim que houvesse uma definição – conta Gasparetto.

Coube a Daiello a ligação. Nome submetido por Cardozo à presidente eleita Dilma Rousseff, Daiello, 44 anos, começou sua vida profissional em Uruguaiana, na fronteira com a Argentina, onde chegou a chefiar a delegacia local. Transferido para Porto Alegre, assumiu, no início da década, a Delegacia Repressão a Entorpecentes (DRE). Por coincidência, a função era ocupada pelo delegado Luiz Fernando Corrêa que, no próximo dia 1º, deixa o cargo de diretor-geral da PF, em Brasília.

Na Capital, além da DRE, Daiello comandou a Delegacia Fazendária, antes de ser transferido para Brasília. No centro do poder, próximo a Corrêa, Daiello coordenou as delegacias fazendárias do país e ganhou prestígio.

E poder. Natural de Porto Alegre, ele sairia do Distrito Federal direto para a mais importante superintendência do Brasil: a direção da PF em São Paulo. Para Gasparetto, as experiências em Brasília e em outros dois Estados, sempre em posições de comando, permitindo uma visão mais ampla da corporação, podem ter sido decisivos para a escolha de Daiello.

– É possível que o ministro tenha levado em consideração na definição o fato de o Leandro (Daiello) ter trabalhado em São Paulo em Brasília. Toda a minha experiência profissional foi no Rio Grande do Sul – diz Gasparetto.

E complementa:

– O Leandro é um delegado linha de frente, que fez um trabalho muito forte de renovação, de combate ao crime organizado e de corregedoria. É um excelente profissional.

Também foi anunciado ontem que o atual diretor-geral da Polícia Rodoviária Federal (PRF), Hélio Cardoso Derenne, permanecerá no cargo.


30 de dezembro de 2010 | N° 16565
CLAUDIA TAJES


Anote na sua lista

Tem a lista dos melhores livros, que geralmente não inclui o melhor livro que a gente leu. Tem a dos melhores filmes, e quem não se sente uma anta por não ter assistido o afegão que ficou em primeiro lugar? Tem a lista dos melhores CDs e das melhores bandas que usam calças justas e coloridas.

Tem a lista das mais bem-vestidas e das mais bem-despidas que, não raro, é a mesma lista. Tem a lista dos mais influentes, dos mais lindos, dos gols mais bonitos, dos espetáculos e shows que marcaram, das frases mais polêmicas, dos mais ricos. Final de ano é tempo de listas, o que é sempre divertido, por mais que não se concorde com nada do que está listado.

A lista parece atestar que o ano não passou em branco e que há muita coisa a ser festejada. Dentro deste espírito, ainda que festejado apenas por alguns poucos, merece destaque um fato recente, mas que já pinta como campeão na lista dos momentos bizarros de 2010: o aumento de salário que deputados e vereadores se autoconcederam.

Começou com os deputados federais se auto-outorgando 61,8% a mais no contracheque, mesmo índice que reajustou os salários da Presidente, dos Ministros e dos Senadores. Já os deputados gaúchos se autopresentearam com um aumento um tantinho maior, de 73%.

Na Zero Hora de terça-feira, um dos representantes da nossa Câmara Municipal responsabilizou as leis pelo aumento de 74% autoconcedido aos vereadores. É de sensibilizar até o assalariado mais duro: os vereadores não queriam um aumento tão grande, a lei foi que os obrigou a praticamente dobrar o próprio salário.

Como o absurdo é uma das matérias-primas da criatividade, algumas reações trazem certo alívio aos inconformados. Na música Gangue da Matriz, disponível no You Tube, o compositor Tonho Crocco dá o nome de um por um dos 36 deputados que votaram a favor do seu (deles) aumento. Já na milésima temporada de verão em Porto Alegre, o espetáculo Tangos e Tragédias traz uma superpromoção: deputados pagam 73% a mais no ingresso.

Enquanto isso, o salário mínimo terá um aumento de 5,08%. Em algum lugar, no fim das contas, é preciso economizar.

Que venham logo as listas de 2011.


30 de dezembro de 2010 | N° 16565
PAULO SANT’ANA | ROSANE TREMEA - INTERINA

Culpas e desculpas

Flagrada saindo às pressas do trabalho no início da noite, fui interpelada por um colega. Parecia que eu corria para um compromisso inadiável, imprescindível, intransferível.

Para mim, era mesmo. Jejum de cinema me causa uma curiosa síndrome de abstinência. E, ainda que goste da tranquilidade das sessões caseiras, minha síndrome é a do ritual.

Pois é, corria para ir ao cinema, atendendo ao convite de um grupo de amigas e surpreendi meu colega e a mim mesma ao responder à óbvia pergunta:

– Que filme vais assistir?

Silêncio.

– Não sei.

Eu não sabia. Só tinha aceito o convite. Ia sem saber a que filme assistiria. No caminho até o cinema, cheguei a temer por aquelas duas horas. Da última vez em que entrei sem ter noção do que veria, o diretor da produção escolhida resolveu um conflito jogando uma vaca de um avião sobre uma mesa de banquete de casamento. Desde então, prefiro eu mesma fazer minha seleção cinematográfica.

Àquela altura, já não havia tempo para arrependimentos. Fui.

Não vou contar o filme nem fazer a crítica do dito cujo – há gente mais capacitada por aí para tanto.

Sentimento de Culpa é daqueles filmes despretensiosos, que mostram cenas do cotidiano, conflitos pessoais, familiares. E cujo título é justificado pela onipresença do sentimento vivido pela protagonista, Kate (Catherine Keener).

Pois como não sentir culpa quando você espera pela morte da vizinha para poder tomar posse de seu apartamento ou vive de comprar e vender móveis e objetos de família de pessoas recém partidas desta para uma melhor?

Kate, casada e com uma filha adolescente, tenta expiar sua culpa por esses e por todos os males da humanidade o tempo inteiro. Sem sucesso.

Nos dilemas éticos impostos pelo filme de Nicole Holofcener, impossível não nos confrontarmos com nossos dilemas diários, nossas culpas e desculpas para tudo. Muitas delas desfilaram em frente à tela.

Lembrei, por exemplo, do meu início de semana. Saí cedo, na manhã de segunda, porém ainda assim atrasada. E, de repente, o trânsito parou. Não era um engarrafamento qualquer, cada vez mais comum na cidade. Era um acidente. Quando finalmente consegui me desvencilhar dos outros carros, vi as duas ambulâncias. Acreditei que fosse grave, avisei a reportagem do jornal. E segui adiante.

Não que eu devesse parar para ajudar, nem havia lugar para fazer isso ali, e o socorro me pareceu rápido e eficiente. Não senti culpa por isso. Senti culpa por até agora sequer ter me preocupado em saber o nome da pessoa, que acabou morrendo no atropelamento, descobri depois.

Senti culpa por, naquele momento, me preocupar apenas com meu atraso. Por ter seguido meu dia como se nada tivesse acontecido, por ter só me concentrado no fato jornalístico e da forma mais fria possível.

Quem era a pessoa, que sonhos tinha, que fardos carregava, o que planejava para 2011? Não sei, não procurei saber.

Não vou, como a Kate do filme, me penitenciar por todos os problemas da humanidade, os próximos e os distantes. Mas prometi para mim mesma prestar mais atenção ao mundo à minha volta. É um atestado de culpa, e uma resolução de ano-novo.


30 de dezembro de 2010 | N° 16565
L. F. VERISSIMO


A volta do MH

O Marciano Hipotético tem vindo seguidamente ao Brasil e sempre sai perplexo com o que vê e ouve por aqui. Na sua última visita, o Lula acabava de ser eleito pela primeira vez, mas ainda não tinha sido empossado. As perspectivas não eram boas.

Empresários preparavam-se para fugir em massa do país se suas piores conjeturas sobre o PT no poder se confirmassem. Banqueiros tremiam, temendo estatização sem indenização. Donas de casa escondiam a prataria. Anunciavam-se anos de privação e sacrifício sob o socialismo iminente.

Oito anos depois, o MH volta e, para começar, não encontra vaga para estacionar a sua nave. A movimentação de Natal nas ruas e nas lojas é tamanha, que o deixa transtornado. Onde está? Certamente não na Grande Cuba preconizada oito anos antes.

MH entrevista pessoas na rua com seu português de novela, aprendido nas ondas da TV, e descobre que a maioria está contente, está empregada, teve dinheiro ou crédito para as compras e julga que as coisas vão melhorar ainda mais.

– Quer dizer que, qui, il socialismo ha funzionato? – pergunta MH, com sotaque do Tony Ramos.

– O sociaquê?

A perplexidade de MH aumenta. O Lula foi deposto, será isso? O PT não conseguiu implantar seu programa, a reação venceu e o Lula foi corrido do governo. Que nada, lhe informam. Lula ficou oito anos e ainda escolheu sua sucessora. Sucessora?! Sim, uma mulher.

Dilma, ex-ativista política, ideologicamente mais à esquerda do que Lula e que, todos esperam, só completará o seu trabalho de consolidação do capitalismo no Brasil. A esta altura, MH decidiu que precisava de um drinque. Entrou num bar e pediu “Amoníaco. Duplo!”

Sempre impressionou muito ao MH a quantidade de siglas de esquerda na política brasileira. Em nenhum outro lugar do mundo há tantas graduações de “esquerda” para se escolher, e tantas já chegaram a ser governo, com ou sem coligações, sem que isto afetasse muito o conservadorismo dominante.

MH pretende desenvolver uma tese, na viagem de volta ao seu planeta. A esquerda brasileira é estilhaçada desse jeito de tanto bater na cidadela do poder real sem conseguir penetrá-la. É uma tese complexa, mas a viagem é longa.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010



29 de dezembro de 2010 | N° 16564
MARTHA MEDEIROS


Que raios estou fazendo aqui?

Não há revista ou jornal que não traga matérias sobre lugares encantadores para se conhecer. Viajar deixou de ser um luxo para se tornar quase obrigatório. São tantas promoções e pacotes, que fica mesmo difícil resistir.

Adoro viajar e adoro livros de viagem, incluindo os de ficção. Geralmente, as narrativas confirmam a ideia de que viajar abre horizontes, traz novos conhecimentos e nos aperfeiçoa como seres humanos. Compensa suportar voos atrasados, cansaço e imprevistos, pois receberemos o Éden em troca. Quanto às roubadas, ninguém dá um pio. É proibido falar “antipatizei com Paris” ou “achei o Caribe um tédio”. É de bom-tom gostar de tudo e, se a viagem for para um destino exótico, convém gostar mais ainda, para não passar recibo de preconceituoso.

Deve ser por isso que me diverti com o livro Eu, Minha (Quase) Namorada e o Guru Dela, do inglês William Sutcliffe. O livro conta a história de um garoto de 19 anos que é pressionado pelos amigos a sair de Londres para fazer uma viagem de aventura em seu período de férias.

Por quê? Ora, porque todo mundo faz. Bem que ele gostaria de passar as férias em casa se empanturrando de porcaria em frente à TV, mas acaba conhecendo uma guria que está de partida para a Índia e, muito refinado, pensa: “Essa mina está me dando mole, vou viajar com ela e me dar bem”.

A “mina” quer encontrar o próprio eu, enquanto que o garoto, nos primeiros cinco minutos em Délhi, quer encontrar uma pousada com ar condicionado. A moça encara todas as privações com enlevo, já que está num tour espiritual, enquanto nosso amigo inicia um tour pelo inferno, e cabe a nós, leitores, não ligar para o fato de não estarmos com um Balzac ou Tchekhov nas mãos.

Ler as aventuras de um estudante que declara ódio à Índia assim que aterrissa, e que odeia todos os mochileiros que lá estão, e também todos os viajantes sem dinheiro que escolhem ir para lugares insalubres com o intuito de procurar o próprio eu, nos faz viajar com ele para o adorável mundo do politicamente incorreto, que hoje é quase um ponto esquecido do mapa.

O livro é engraçadíssimo. Certamente já entramos em alguma roubada que nos fez lamentar ter nascido, porém, muito ponderados que somos, catalogamos o incidente como “uma experiência de vida”. Mas o personagem não tem essa condescendência. Ele quer cortar os pulsos e engolir três caixas de veneno pra rato. E tem motivo.

Nunca embarquei numa fria colossal, mas já passei alguns maus momentos em viagens, quase sempre por falta de informação. Mas quando sobra humor e presença de espírito, mesmo a mais medonha das viagens rende algumas risadas na volta. Ou inspira um livro cômico e despretensioso para ser lido numa tarde de verão.

Em tempo: não conheço a Índia. Me atrai mais ou menos. Sei de pessoas que veneram a cultura e as peculiaridades locais. E de pessoas que não voltariam a colocar os pés lá nem para salvar um filho. Por ora, ainda não incluí o país na lista dos “100 lugares que não posso morrer sem conhecer”, mas vá saber. Tudo é uma experiência de vida.

Aproveite o dia. Uma linda quarta-feira para você.


29 de dezembro de 2010 | N° 16564
JOSÉ PEDRO GOULART


Enterrada viva

Deu no jornal. Antes de a tampa do caixão ser fechada alguém notou que havia uma réstia de vida. Tiraram dona Maria das Dores dali; e rápido como rápido se faz essas coisas – mais rápido que um sinal da cruz – levaram-na de volta para o hospital. Morreu dois dias depois, e aí, de verdade; desta vez sem sobressaltos. A ida e a vinda portanto podem ter parecido um adiamento inútil para dona Maria, portadora de Alzheimer, inconsciente – a lástima ficou com os parentes.

Mas talvez não tenha sido bem assim. Quase tiraram dois dias daquela senhora de 88. E seja com 20 ou com 100, um dia vale ouro – quem compreende isso é rei. E quem há de saber o que se passou com a dona Maria das Dores nessas horas que quase lhe foram roubadas?

Imersa na medicação, os neurônios desconjuntados, num vai e vem entre o hospital e o cemitério, dona Maria aproveitou para sonhar. Um sonho longo de memórias, fantasias e recordações. E como não sei nada dela, só me cabe imaginar.

Em primeiro, sonhou a senhora com o sol, e quase sentiu que a pele ardia, mesmo agora, naquele momento. Que falta haverá de fazer o sol! A partir do sol, surgiu a mãe, jovem como nunca – as mães saltitam na nossa memória como pipoca no azeite quente. Podia sentir o cheiro do casaco dela, lembrar de diferentes doçuras enquanto ela sussurrava uma cantiga repetida.

Um sonho é como uma teia tecida por uma aranha particular, parece aleatório, mas o desejo da aranha é capturar qualquer fragmento solto na memória. De maneira que dona Maria passou dois dias que eram seus – mas quase lhe foram roubados – tecendo sua última teia. Ao recordar que um vez dormiu na missa, por exemplo, dona Maria das Dores riu. Lembrou da fúria do padre, do castigo do pai e acima de tudo, do medo que sentiu da punição de Deus.

Mas agora não tinha mais medo. Embalada por um sonho sem enquadramentos ela se viu fluir sem roteiro, um filme de Godard. Excluiu sofrimentos, mas guardou de propósito algumas tristezas (o espinho valoriza a beleza da rosa). Percebeu a rotina do tempo, a inutilidade das queixas, a saudade infinita da infância. Distraiu-se imaginando que podia produzir uma lágrima.

Enfim, a senhora aproveitou as últimas horas – recuperadas a partir do esforço de um último suspiro no caixão – sonhando. E a vida é sempre um sonho pra trás e um sonho pra frente. De maneira que dois dias depois; de volta ao caixão adiado, mas guardado para ela, dona Maria das Dores pode finalmente acordar.


29 de dezembro de 2010 | N° 16564
PAULO SANT’ANA | MÁRIO MARCOS DE SOUZA - INTERINO


Pequenas mudanças

Pode ser que a conclusão a seguir se confunda um pouco com o desejo pessoal, desenvolvido em muitos anos de frustração e alguma irritação com os motoristas gaúchos, mas vou arriscar: tenho percebido que há uma sutil mudança nas ruas da Capital. Nada ainda que dê o carimbo de civilizado ao trânsito daqui, que tanto incomodou as belas turistas argentinas da Recoleta citadas pelo Léo Gerchmann na coluna de ontem.

Estamos muito distantes desse ponto, mesmo vivendo a apenas duas horas de Gramado e de suas faixas de segurança respeitadas rigorosamente – inclusive, para surpresa de quem anda por lá, por carros com placas de Porto Alegre.

Nesse pandemônio que por vezes toma conta de nossas ruas (nem vou falar das estradas, porque aí é caos absoluto), onde placas de pare ou sinais de trânsito costumam ser solenemente ignorados, qualquer mudança, por menor que seja, é um avanço e tanto – e elas começam a se tornar visíveis. Está bem, podem me chamar de parente da Velhinha de Taubaté, mas noto que muitos motoristas começam a respeitar um pouco mais as faixas de segurança.

Nada ainda que nos anime a promover foguetórios, é verdade, mas comece a observar. Em locais de faixas para pedestres, já é possível reduzir a velocidade e parar, sem o risco de ser abalroado por algum apressado. Antes, era sempre um risco. O carro de trás vinha tão perto do seu, que você certamente não teria coragem de parar na faixa. Se em lugar de um veículo pequeno fosse seguido por ônibus ou caminhão, aí, então, o risco de alguma tragédia subia alguns degraus consideráveis na escala de probabilidades.

Nesse ambiente, mesmo que sua consciência repetisse aflitos “pare, pare” antes da faixa, você seguia adiante por medo daquele carro colado atrás – até porque distância regulamentar entre um veículo e outro aqui em nossas ruas nunca foi respeitada. Se, por acaso, você contrariasse a cautela e parasse, ouviria um festival de buzinas. É algo que se repetia com extraordinária frequência. Selvageria pura.

Pois bem, agora já é possível seguir o que manda a lei. É a primeira e sutil mudança. A impaciência reduziu-se alguns pontos, o que já é um avanço considerável. Mas não é só o motorista. Saudavelmente, o pedestre também está mudando.

É comum ver pessoas reclamando de motoristas que não respeitam as faixas, exigindo que a lei seja cumprida, como fez um ciclista dias atrás ao parar e discursar diante de um apressado motorista de lotação. O mais salutar é que, para ter estes direitos respeitados, os pedestres (está bem, parte deles) estão procurando cumprir seus próprios deveres.

Assim, buscam as faixas para a travessia – até como forma de ter o direito de protestar. As campanhas, pelo jeito, começam a ser levadas em conta.

São avanços pequenos ainda. Nada que justifique a conclusão de que podemos dirigir ou caminhar pelas ruas com a sensação de que estamos em Londres, mas dá para ter algum otimismo. Os pequenos sinais podem funcionar como multiplicadores.

Quem visita algumas cidades do Interior certamente volta com o sonho de ver toda aquela educação de trânsito repetida em Porto Alegre. Se para completar ainda perceber aqui as pequenas mudanças nas ruas, então haverá esperança de novos tempos. Não custa nada incluir entre os sonhos deste fim de ano de cada um de nós um trânsito civilizado, sem aqueles vergonhosos balanços trágicos dos últimos tempos. Até as argentinas aplaudiriam.


29 de dezembro de 2010 | N° 16564
DAVID COIMBRA

O livro que escrevi e o livro que não escrevi

Lembro de minúcias daquela tarde fria do começo dos anos 90. Cheguei à redação em que trabalhava e colhi da mesa do editor-chefe o exemplar do dia de Zero Hora. Com o peso do corpo apoiado em um só pé, passei a folhear o jornal, meio distraído, até pechar em uma notícia pequena, numa esquina escura da página: o prefeito de Erechim, Antônio Dexheimer, havia desistido de escrever um livro sobre sua participação no Caso Daudt.

Levei 30 segundos para decidir o que fazer. Fechei o jornal, olhei para o editor e anunciei meu pedido de demissão. Enquanto ele perguntava se eu havia enlouquecido, levantei o telefone e liguei para a prefeitura de Erechim. O prefeito, por favor. Quando Dexheimer atendeu, avisei:

– Estou indo para aí amanhã. Vou te entrevistar para escrever o livro do Caso Daudt.

Ele queria pensar, queria conversar. Não deixei:

– Chego amanhã.

De fato, 24 horas depois, entrevistava-o no sofá da sala de seu apartamento. Nos 40 dias que se seguiram, entrevistei outros envolvidos no caso, li as 3.413 páginas do processo e TODAS as notícias publicadas a respeito entre 1988 e 1990, assisti duas vezes à gravação das 42 horas do julgamento de Dexheimer e escrevi uma média de 20 páginas por dia em minha pequena porém brava Olivetti Lettera 35, de metal, com o rolo da fita estragado.

Estava obcecado com aquele trabalho. Não fazia outra coisa de manhã, de tarde ou de noite. Escrevia, escrevia e tomava leite condensado direto da lata. Engordei cinco quilos. Mas gostei do resultado. Do livro, não da minha forma física.

Esse foi o livro que escrevi.

O livro que não escrevi já tinha até título: “O Caso Lia Pires”. Concebi-o durante as entrevistas que fiz com o próprio, que, todos sabem, foi o advogado de Dexheimer no julgamento que o absolveu das acusações pelo assassinado de Daudt.

Havia conversado com Lia Pires em sua mansão na Dom Pedro II e em seu escritório no centro da cidade. Falou-me sobre o Caso Daudt, sim, mas também sobre dezenas de outros casos, alguns curiosos, outros tétricos, todos interessantes. Terminado o trabalho com Dexheimer, tornei a procurar Lia Pires e lhe propus o livro. Seria um relato sobre seus júris mais palpitantes. Uns 20, nada mais do que isso. Pareceu gostar da ideia, mas pediu tempo para pensar.

Fiquei de procurá-lo em outra ocasião. Como não marcamos data, fui adiando o encontro. Então, as coisas foram acontecendo (as coisas acontecem), o tempo foi passando (o tempo passa) e esqueci do “Caso Lia Pires”. Com a morte do velho lobo dos tribunais, dias atrás, lembrei daquele livro. O livro que não escrevi.

O livro que perdi

Audrey Hepburn era bem magrinha. Aqueles seus bracinhos quebradiços, aquelas suas perninhas de gazela. Mas era sensual, que há magrinhas sensuais. Havia toda uma malícia em sua fragilidade. E também impertinência. Quando soube que o diretor John Frankenheimer preferia Marilyn Monroe para estrelar “Bonequinha de Luxo”, ergueu as sobrancelhas como se fossem duas pequenas gaivotas no voo e desdenhou:

– Quem é Frankenheimer?

Exigiu outro diretor para o filme. Foi atendida. Os produtores escolheram Blake Edwards. Que morreu não faz muito, ainda em dezembro, antes de Lia Pires. Ao ler sobre sua morte, fui procurar o meu exemplar do livro que deu origem ao filme. “Bonequinha de Luxo” é o melhor de Truman Capote, ainda que sua obra mais famosa seja “A Sangue Frio”.

Pelo estilo, pelas frases requintadas, por suas soluções, “Bonequinha de Luxo” me ensinou algo. Ou pelo menos espero que tenha aprendido. Fui catá-lo nas minhas estantes, decidido à releitura. Não o encontrei. Mais uma perda no fim do ano.

O livro que li

A cada 15 dias é publicado um novo livro sobre futebol. Passa-se um ano e não é publicado um único bom livro sobre futebol. Com luminosas exceções, como o de Marcelo Ferla, “Os dez mais do Grêmio”, lançado esse mês. Ferla realizou uma eleição para escolher os dez maiores jogadores do Grêmio.

Fui um dos eleitores. Votei nos seguintes: Lara, Gessy, Renato, Aírton, Alcindo, Foguinho, Luiz Carvalho, Ronaldinho, Éder e Danrlei. Elegi os sete primeiros. Os outros escolhidos foram De León, Everaldo e Valdo.

Mas Ronaldinho tinha votos em quantidade suficiente para ser escolhido, tantos quanto receberam Foguinho, Everaldo e De León. O Ferla suprimiu-o da lista por “critérios próprios”.

Como se vê, não é tão pacífica a volta do irmão de Assis.

terça-feira, 28 de dezembro de 2010



28 de dezembro de 2010 | N° 16563
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Como um romance

Às duas e meia da tarde de 24 de setembro de 1834 morreu um homem jovem em Lisboa. A autópsia revelou que a tuberculose tinha consumido quase todo o seu pulmão esquerdo. O coração e o fígado estavam hipertrofiados, os rins e o baço não gozavam de melhor saúde.

Esse homem tinha 35 anos e era D. Pedro I, Imperador do Brasil e Rei de Portugal, e acabava de vencer uma sangrenta guerra civil contra D. Miguel, seu irmão, absolutista, enquanto ele era liberal.

Esse é apenas um fragmento do livro 1822, de Laurentino Gomes, que há semanas lidera as listas dos best-sellers e promete manter-se nelas por muito tempo mais. Trata-se de um biografia do criador do Brasil, mas lê-se como um romance, aliás como 1808, a obra anterior do autor.

Até certa altura do livro, o que se vê é um personagem mais preocupado em levantar saias e levar damas para a cama – a começar pela Marquesa de Santos – do que um estadista mais preocupado em construir uma nação.

Pouco a pouco, no entanto, o marido perpetuamente infiel de D. Leopoldina assume um caráter que se sobrepõe à sua época, candidatando-o a um lugar na História. É assim especialmente quando a trajetória de sua vida se confunde com a do Império que fundou.

Foi graças em grande parte devido a ele que o Brasil se manteve íntegro – um território, um povo, uma língua –, enquanto seus vizinhos latino-americanos se decompunham em dezenas de repúblicas.

Foi assim quando soube tratar as lutas internas com isenção e sabedoria. Foi ainda assim quando entregou a guarda de seus filhos a José Bonifácio. A propósito: o capítulo que trata de sua correspondência com o futuro D. Pedro II é, no mínimo, comovedor.

O excelente Laurentino Gomes acena com um próximo volume – 1889.

A História deste país é grande demais para ficar entregue aos arquivos e fichários.

Lindo dia para você. Aproveite a terça-feira.


28 de dezembro de 2010 | N° 16563
CLÁUDIO MORENO


A mídia amiga

De todos os líderes militares da Antiguidade, nenhum foi maior que Alexandre Magno, que superou todos os demais nas conquistas que empreendeu e nas mentiras e exageros que contaram a seu respeito. Uma das principais fontes dessas invencionices foi um tal de Onesícrito, escritor e historiador que acompanhou Alexandre até os confins da Ásia e registrou as façanhas de seu ídolo num volume em que fato e fantasia se misturavam de forma constrangedora.

Uma das lendas mais famosas divulgadas por este embusteiro foi a visita de Taléstris, rainha das Amazonas da distante Hircânia, na região do Mar Cáspio. Segundo o historiador, a rainha, mulher admirável tanto pela formosura quanto pela força física, chegou ao acampamento à frente de uma escolta de trezentas mulheres guerreiras, em armadura de combate, cavalgando silenciosamente em perfeita formação.

Admirado com o porte altivo das visitantes, Alexandre – que era conquistador não apenas de reinos e continentes – ajudou Taléstris a apear do cavalo e perguntou, galantemente, em que poderia servi-la.

A resposta só podia ser uma, pois – como Hollywood depois viria a repetir infinitamente – era inevitável que o encontro de dois personagens tão excepcionais, ambos tão poderosos e bonitos, produzisse o calor necessário para a combustão espontânea dos corpos. “Vim aqui para dormir contigo”, disse a rainha, com aquela segurança de quem não duvida de sua beleza.

“Tu demonstraste ser um homem magnífico, e eu supero todas as mulheres em força e coragem; imagina o que poderá ser um filho nosso!”. Alexandre, encantado, aceitou a proposta e, nas palavras do cronista, “entreteve-a por treze dias, ao cabo dos quais honrou-a com presentes e a dispensou”.

Esta cena, sem fundamento histórico algum, foi muito ridicularizada por detratores de Alexandre, que a usavam, entre outras, para demonstrar que grande parte da fama atribuída a ele era pura propaganda. É claro que isso não afetava a opinião dos verdadeiros crentes – como Arriano, um dos biógrafos do rei, que assim explicava os exageros que iam ficando cada vez mais evidentes: “Se o fato realmente ocorreu, só tenho a louvar Alexandre; no entanto, se os historiadores contaram isso só porque julgaram que era algo que ele faria, ainda assim só resta louvar Alexandre”.

Era o prenúncio daquilo que hoje chamamos de “mídia amiga”, sempre disposta a justificar seja qual for a atitude do seu líder político, representada magnificamente pelo Gen. Franks, quando lhe perguntaram o que ele pensava a respeito da estratégia do Secretário da Defesa, seu superior, para a ofensiva americana no Afeganistão: “Senhor, eu penso exatamente o que o meu secretário pensa, o que ele sempre pensou, e o que ele sempre irá pensar, ou qualquer coisa que ele pensou que poderia pensar”.


28 de dezembro de 2010 | N° 16563
PAULO SANT’ANA | LÉO GERCHMANN - INTERINO


Pelos anjos da Recoleta

Na onda do WikiLeaks, vou cometer uma inconfidência que deixará muito marmanjo desconfortável: todos os homens que vão a Buenos Aires se encantam com a beleza das portenhas, loiras, morenas, castanhas, altas, baixas, tez mais clara ou escura, quase que invariavelmente lindas, curvilíneas, pele suave e pernas torneadas.

Sim, são coisas que em geral só se comentam entre homens, como os diplomatas também têm por hábito comentar lá suas percepções top secret. Mas assumo aqui meu lado Julian Assange e revelo essa surpreendente informação capaz de incendiar o Clube do Bolinha e suas hipocrisias.

Pois você, que agora mesmo se apressa em esconder este jornal da sua mulher para depois se queixar com ela de que o entregador, aquele folgado, esqueceu-se de trazê-lo, saiba que também eu, em nome da transparência, poderia correr o risco de ser cobrado pela minha mulher.

– Tu reparas nas mulheres em geral?! Bem que eu desconfiava!

Confesso que sim, reparo. Por uma questão de pura e inocente estética.

Só que a Dione, minha mulher, não faria essa cobrança. Até porque não precisa do WikiLeaks para saber o que penso: que a beleza da vida está no rosto das crianças, na conquista de um filho, no gol do meu time, em um texto bem escrito, no mar, na mesa de um café colonial generoso em suas geleias, queijos e sucos, na melodia de Let it Be, nas curvas de uma mulher linda...

Enfim, beleza é o que não falta na vida.

Feito o preâmbulo, segue uma informação de altíssimo interesse público: o bairro mais sofisticado de Buenos Aires, a Recoleta, dá fundamentos científicos a quem jura que vê por lá mulheres das mais maravilhosas que há no mundo. São só 7,3 homens para cada 10 mulheres, sendo grande parte delas lindas! O paraíso, com seus anjos, fica aqui ao lado! Os dados são fresquinhos. Vêm do último censo argentino, cujos resultados saíram faz poucos dias. Ocupei-me de esquadrinhá-lo e cheguei a essa constatação elucidativa.

E foi lá, em um dos tantos cafés charmosos da Recoleta, que certa vez ouvi um diálogo entabulado entre duas beldades que recém haviam visitado Porto Alegre. Como Julian Assange e suas inconfidências, relato aqui o que escutei, algo tão surpreendente quanto o desgaste do governo brasileiro ao fazer vista grossa para o fascismo iraniano.

– Sabe que eu estive na Bienal do Mercosul, Ana?

– Ah, Paula, Porto Alegre é uma bela cidade. Parece Montevidéu. Certa vez, comi um peixe maravilhoso no mercado central.

– Também acho. Mas não gostei de uma coisa: aluguei um carro e percebi que as pessoas, tão solícitas no trato pessoal, transformam-se no trânsito. Uns correm como se estivessem competindo. Esquecem-se de que a educação nos orienta a respeitar filas. Outros falam ao celular ou se penteiam ou fumam distraidamente, trancando o fluxo de quem está apressado, como se estivessem sozinhos na sala de sua casa.

– Ai, ai, parece um “tô nem aí” generalizado! Parece a gente nos anos 1990, na época do Menem, do câmbio maquiado, quando nos encharcávamos de champanha, nos empanturrávamos de pizza e nem aí pro resto. Era a fase do “cada um com seus problemas”, do individualismo como filosofia de vida e da solidariedade como valor obsoleto. Nem parecia que éramos nós, sempre tão cultos e educados.

– É, só percebi isso, lá em Porto Alegre, no trânsito. Que pena! Uma cidade tão boa, de gente tão acolhedora... Ficam irreconhecíveis ao volante de seus carros.

Depois de tanta informação relevante contida nesta crônica transparente, aqui vai a dica: tu, porto-alegrense apreciador da vida e da beleza, do paraíso que muitas vezes fica ao lado e dos anjos que te observam com ar de justa censura, pense bastante ao entrar no carro. De que vale sermos uma cidade que se orgulha de si mesma se perdemos a civilidade dessa forma? É feio. Não pega bem.

E os anjos detestam.


28 de dezembro de 2010 | N° 16563
MOACYR SCLIAR


Dilma, leitora

Lula passará para a história como um líder carismático, de imensa popularidade. Mas não como leitor. Em parte por causa de seu passado humilde, não chegou a se familiarizar com os livros. E também não era muito de ler jornais nem revistas, mas aí por outra razão: davam-lhe “azia”, certamente por causa das críticas. Já a presidenta (presidenta, sim; ela tem o direito de escolher a palavra que designa o seu cargo) Dilma nunca foi muito popular nem carismática.

Mas, e ao contrário de seu antecessor, é uma grande leitora (como, aliás, Tarso Genro, que tem uma bela carreira como crítico, inclusive aqui em ZH). Numa entrevista recente, Dilma falou de suas preferências literárias, que começaram por Monteiro Lobato, Jorge Amado, Machado de Assis, e se expandiram para incluir Marcel Proust, Fernando Pessoa, Cecilia Meireles, João Cabral; incluem também o japonês Bashô, inventor do haicai. Um elenco de autores para ninguém botar defeito, um apreciável minicânone literário.

Partilho com ela uma preferência: a poesia da norte-americana Emily Dickinson (1830-1886), cuja obra descobri na pequena cidade de Amherst, Massachusetts, onde ela viveu e onde fui professor visitante na universidade.

A casa em que morou, transformada em museu, informa muito sobre sua vida, extraordinária, e sua obra, idem. De família rica, Emily era considerada excêntrica, e de fato, vestia-se de branco, não se casou, não teve filhos, fez poucas amizades (em geral através de correspondência) e, no fim da vida, não saía do quarto.

Escrevia sem cessar, mas não publicou mais que uma dezena de seus quase 1,8 mil poemas, redigidos de forma peculiar: usava, como vocês já verão, muitas maiúsculas e muitos travessões, estes conferindo aos versos um ritmo ofegante, por assim dizer.

A morte era um de seus temas prediletos. Um de seus poemas mais famosos, e comoventes, começa com a frase “I died for Beauty” e que aqui vai, em tradução de José Lira (sobrenome que condiciona destino) para a Editora Iluminuras: “Morri pela Beleza – e em minha Cova/ não me sentia a gosto/ quando Alguém que morreu pela Verdade/ à Cova ao lado chegou –/ Indagou gentil por que eu viera – / E eu disse – ‘Pela Beleza’ –/ ‘Eu vim pela Verdade – a Mesma Coisa–/ Somos irmãos’ – respondeu./ E quais Parentes juntos numa Noite/ Conversamos nos Túmulos – / até que o musgo chegou aos nossos lábios/ e nossos nomes cobriu”.

Estes poucos versos criam um clima onírico e reúnem três grandes temas, a morte, a verdade e a beleza; temas em torno aos quais gira nossa existência. É particularmente tocante a afirmação de que verdade e beleza, o raciocínio e a emoção, a realidade e a imaginação são a mesma coisa. Um conhecimento fundamental para quem vai lidar com seres humanos, na política inclusive.

Se depender da bagagem literária, Dilma Rousseff está começando uma grande gestão. De algum lugar, Emily Dickinson torce por ela.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010


MOACYR SCLIAR

Um sonho de Ano-Novo

Consolava-o uma ideia: nunca havia dormido tão bem, nunca tivera um sonho tão gratificante

Ladrão assalta uma casa, em Goiânia, resolve tirar uma soneca e acaba preso. O assaltante, um homem ainda jovem, entrou na casa que estava vazia, reuniu todos os objetos que pretendia levar, mas antes de ir embora tratou de dormir um pouco. A dona da casa encontrou-o dormindo na cama dela e chamou a polícia. O homem estava num sono tão profundo que os policiais tiveram de jogar água fria em seu rosto para que acordasse. Folha.com

ELE TINHA UM SONHO: COMEÇAR o Ano-Novo com uma festa, uma bela festa, com direito a peru assado, champanhe, salada de frutas, torta de chocolate. Uma festa que faria a alegria de sua humilde família, de seus amigos, que tornaria 2011 um ano inesquecível. Mas onde arranjar dinheiro para isso? Pobre, desempregado, não tinha um centavo no bolso.

O jeito era recorrer a um assalto. Perto da favela onde morava havia uma casa, que não era exatamente grande ou luxuosa, mas que certamente teria televisores, computadores e eletrodomésticos diversos.

A dona, uma senhora viúva, dona de uma loja no centro da cidade, saía todos os dias para trabalhar e não deixava ninguém cuidando da moradia. Uma barbada que ele tinha de aproveitar, se queria mesmo dar a sua festa.

O problema era a falta de experiência, que o deixava nervoso. Mas precisava ao menos arriscar.

Na noite que precedeu o assalto simplesmente não conseguiu dormir, tal o seu nervosismo. De manhã estava tonto de sono, sentindo-se mal. Agora, porém, iria em frente de qualquer maneira.

Foi até a casa, esperou que a dona saísse. Pulou o muro, e sem a menor dificuldade conseguiu arrombar a porta. Ficou maravilhado: havia muito mais coisas do que ele imaginara: três TVs de tela plana, dois laptops, equipamento de som sofisticadíssimo...

Levou tempo para reunir os objetos e colocá-los num enorme saco de aniagem que ficou pesado e que exigiria dele, homem franzino, um enorme esforço para ser carregado - esforço que ele, contudo, faria com prazer. Sem esforço não se consegue nada na vida.

Já ia embora quando, ao entrar no quarto da dona, viu a cama em que ela dormia. Uma cama maravilhosa, larga, macia. A cama que ele sempre pedira a Deus.

Resolveu deitar um pouco, só um pouco, uns minutos. Mas suas pálpebras pesavam, o sono vencia-o e acabou adormecendo.

Sonhou. Com o que? Com a festa de fim de ano, claro. Ali estavam os familiares, ali estava o pessoal da favela. Todos radiantes, todos homenageando-o. Na hora do brinde ele abriu uma garrafa de champanhe.

Como não tinha prática, o líquido esguichou, molhando-lhe o rosto. Com o que ele acordou.

Estava, mesmo, molhado. Mas era água, água comum, da torneira. Água à qual os policiais haviam recorrido para arrancá-lo do sono profundo e levá-lo preso. E para a cadeia ele foi. Triste, naturalmente.

Consolava-o, porém, uma ideia: nunca havia dormido tão bem, nunca tivera um sonho tão gratificante. E não poderia haver melhor maneira de entrar no ano novo do que sonhando com coisas bonitas e animadoras.

MOACYR SCLIAR escreve nesta coluna, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas no jornal.


27 de dezembro de 2010 | N° 16562
ARTIGOS - Paulo Brossard*


Nunca antes

Depois de escolher e eleger sua sucessora, depois de, nas barbas da Justiça e dos representantes das nações estrangeiras, assumir ostensivamente a direção da campanha de sua candidata, exercendo um poder que nem a Constituição nem as leis lhe outorgavam, de resto, inconciliável com o caráter nacional de sua investidura, depois de se autodenominar “o povo”, “a opinião pública”, o presidente da República, às escâncaras, fez as vezes do cel. Chávez. E, para não deixar dúvidas, se autoconcedeu o diploma de haver realizado o maior e melhor governo do Brasil em todos os tempos.

A verdade é que os governos acertam e erram e por muitas razões, a primeira das quais é que os governantes são homens, e estes, ainda que cheios de louváveis propósitos, não são imunes ao erro; ora, em relação ao que está vivendo seus últimos dias, pode-se dizer o mesmo. Entre acertos tanto mais dignos de nota quando seu chefe, a despeito de sua clara inteligência, não é e nunca foi um scholar e nem pretendeu sê-lo, também incorreu em falhas lamentáveis por ação e omissão.

De resto, ele tinha que pagar tributo ao maldito sistema presidencial; tendo sido eleito pela maioria do eleitorado, seu partido não chegou a eleger cem deputados, quando são 513 os membros da Câmara, nem 20 senadores, quando 81 são os membros da Câmara Alta; como seu saber, da experiência feito, sua habilidade e prática sindical, não teve dificuldade em obter maioria parlamentar e crescer em poder e influência, a ponto de, como erva-de-passarinho, à custa da oposição, a ponto de desequilibrar a equação política nacional; o Executivo se agigantou e seu titular fez o que quis, interna e externamente.

Ligando-se ao Irã para mostrar seu distanciamento de Washington, foi de um primarismo a lembrar a criança que reage pondo a língua de fora, quando não faltavam maneiras adequadas para marcar as diferenças.

O do escândalo do Complexo do Alemão, um território soberano encravado no território nacional, durante oito anos não foi visto pelo governo do “nunca antes”, e só rompeu o pacto da convivência silenciosa quando o morro iniciou a guerra civil abertamente.

De janeiro a agosto do ano em curso, navios que fazem escala no Brasil, juntos, parados, tiveram de esperar 78.873 horas, ou 3.286 dias, para atracar em portos nacionais, notando-se que cada dia parado custa ao barco coisa de US$ 25 mil; esses números indicam que, comparados com os do ano anterior, o aumento foi de 16%; ainda mais, esse fenômeno levou as cinco maiores empresas de navegação a 741 cancelamentos de escala, 62% superiores aos de 2009, no mesmo período.

Por sua vez, para o atraso no embarque e desembarque de mercadorias, não são isentas de responsabilidades a descoordenação entre Agência Reguladora, Polícia Federal, Receita Federal e não sei mais o quê. A título de ilustração, só no porto de Santos, 120 navios ficaram fundeados simultaneamente por falta de alguma providência de terra. São fatos de inconcussa gravidade que, direta e indiretamente, atingem magnos interesses do país e de milhares de pessoas.

Muito teria a dizer a respeito, mas me falta espaço para mostrar que a majestática declaração presidencial parece decorrer de uma explosão de megalomania festejada por uma publicidade “nunca antes vista neste país”.

A majestática declaração parece decorrer de uma explosão de megalomania
* Jurista, ministro aposentado do STF


27 de dezembro de 2010 | N° 16562
KLEDIR RAMIL


O ano que passou

Corajosamente, como costumo fazer a cada virada de ano, aqui estou para conferir as previsões que apresentei para 2010. Digo “corajosamente” porque muita gente faz estardalhaço com presságios espetaculares, mas quando chega o fim do ano, disfarça e esquece de verificar se deram certo.

É gente que quer aparecer, imaginando escândalos de celebridades e outras bobagens. Minha preocupação é antever tragédias reais. Sou um sujeito racional, trabalho com um sistema científico que utiliza um instrumento de leitura chamado Chutômetro. É um aparelho com tecnologia chinesa, reconhecido pela ABNT e portanto com selo de qualidade. Como vocês sabem, Edneide, minha secretária, é alcoólatra.

Tem dificuldade de organizar seus próprios pensamentos, imaginem meu escritório. Pois bem, ano passado Edneide foi botar pra carregar a bateria do Chutômetro e queimou o aparelho. Liguei para Shangai pedindo um novo, mas ainda não chegou.

Tudo isso só pra explicar que, como eu estava sem meu fiel instrumento de leitura, me senti limitado em minha capacidade de perceber o futuro com clareza e decidi realizar o tradicional ritual inca da Chicha Loca, para abrir as janelas da alma ao desconhecido.

O ritual inclui uma dança pré-colombiana e a ingestão de uma sopa de quinua temperada com aquela raiz esquisita da selva peruana. Depois de três dias dançando e cantando na volta de uma fogueira, tive uma visão.

E foi essa visão apocalíptica de uma batalha entre forças extraordinárias querendo dominar o mundo que eu descrevi na minha previsão. Por força da beberagem e da falta de equipamento adequado, terminei por enxergar apenas uma tragédia para o ano de 2010, mas de tal magnitude que ofuscou todas as outras.

Como ficou comprovado. Vamos ao que interessa. A seguir, repito minha previsão – publicada na edição de Zero Hora de 31 de novembro de 2009 – que dispensa maiores explicações:

“O exército vermelho vencerá todas as batalhas e seguirá triunfante em seu objetivo de conquistar o mundo. Mas o Todo-Poderoso surgirá em Abu Dhabi para impedir tal façanha. Tempos estranhos virão e seremos obrigados a agüentar até um sujeito descontrolado, dançando sentado.”


27 de dezembro de 2010 | N° 16562
PAULO SANT’ANA | DIONE KUHN (INTERINA)


Difícil missão

Estamos a cinco dias de vivenciar um momento único no país. No sábado à tarde, um presidente da República se despedirá do cargo levando consigo índices recordes de popularidade e aprovação. À espera do bastão, estará a primeira mulher presidente do Brasil. Lula deixará o Planalto depois de 30 anos com a vida virada e revirada pelas urnas. Dilma assumirá o posto sem nunca ter participado, à exceção de 2010, de uma eleição.

Quem acompanhou a trajetória de Dilma no Rio Grande do Sul, mesmo à distância, fica ainda mais convencido de que Lula marcou época. Dilma foi forjada em gabinetes, nunca demonstrou gosto pela política.

Até virar ministra de Minas e Energia, em 2003 – seu primeiro cargo no governo Lula –, era totalmente desconhecida dos brasileiros. Cada posto que galgou foi por sua competência, mas também porque Lula quis. Ele tinha um projeto para ela, com início, meio e fim. Dilma Rousseff é obra de Luiz Inácio Lula da Silva.

Fico imaginando daqui a 30 anos um professor de História na sala de aula resgatando este período vivido pelo Brasil. Dirá ele que nunca antes na história deste país um operário havia conseguido chegar à Presidência. Nunca antes um presidente havia elegido um sucessor e, ainda por cima, uma mulher e técnica.

Dilma nunca teve gosto pela política, mesmo sendo filiada a partido e tendo trabalhado em governos. Nada disso, é claro, apaga seus méritos de gestora. Só que, para ser presidente de um país que somente este ano alcançou a maioridade civil – em outubro completaram-se os 21 anos do restabelecimento do voto direto para presidente –, não basta saber administrar.

Sem o carisma, a eloquência, a habilidade e o patrimônio político de seu padrinho, Dilma não terá as mesmas chances que ele teve. A oposição, que não ousou pedir o impeachment de Lula em meio a um dos maiores escândalos de corrupção do país – o mensalão, em 2005 –, não pensaria duas vezes se Dilma fosse a chefe deste país.

À futura presidente, será dado o direito de errar, mas não tanto. Por isso, não lhe resta outra alternativa se não a de seguir à risca o manual básico de sobrevivência:

1) não ser tolerante com desvios éticos em seu governo (nesse ponto, já está devendo uma explicação em relação a Pedro Novais, o seu futuro ministro do Turismo – que de turismo nada entende –, conhecido nacionalmente por ter usado verba da Câmara para pagar gastos em um motel no Maranhão);

2) saber negociar exaustivamente para manter a base parlamentar, sem perder de vista os aspectos éticos (nenhum de seus antecessores conseguiu isso);

3) ainda assim, ser hábil o suficiente para não se tornar refém de aliados como o PMDB (na primeira crise, será o PMDB o primeiro a cobrar mais cargos sob a ameaça de abandonar o barco);

4) ter serenidade para aceitar as críticas, sabendo que é a pessoa mais exposta do país;

5) ser magnânima, aceitando e respeitando o papel da oposição em uma democracia;

6) evitar que seu governo seja mera continuidade do seu antecessor, dando-lhe uma cara própria;

7) evitar que a tentação de elevar os juros para conter a inflação emperre a indústria do país;

8) sem abdicar de seu perfil técnico, saber identificar os sentimentos populares, cuidando para não se tornar uma tentativa de imitação do presidente Lula;

9) evitar que os programas assistencialistas tomem conta das ações públicas;

10) ter cuidado com o que fala (Lula, em suas improvisações, muitas vezes escorregava na sua própria língua. Mas era Lula).

Dilma terá quatro anos para mostrar que é uma obra bem acabada de seu criador, mas, também, que tem luz própria.


27 de dezembro de 2010 | N° 16562
L. F. VERISSIMO


10 quase bons

Fui pouco a cinema em 2010. O fato do ano cinematográfico ter sido dominado por tropas de elite, vampiros adolescentes e espiritismo talvez tenha contribuído para isso. Foi até difícil fazer uma lista dos 10 que eu mais gostei – nenhum passou de quase bom.

Achei o Avatar espetacular, o filme mais subversivo do ano, mas depois de vê-lo e de pensar um pouco você começa a sentir um certo ressentimento pela competência humilhante com que mexeram com todos os seus sentidos. Só os americanos mesmo para fazerem filmes antiamericanos como só os americanos sabem fazer.

Em vez do Tropa de Elite 2 (ou O arrependimento, como, pelo que ouvi dizer, deveria ser o subtítulo do filme, em contrição pela truculência excessiva do primeiro) preferi ver Antes que o Mundo Acabe, o delicado filme da Ana Luíza Azevedo, que se passa num Brasil diferente.

O único outro filme nacional que vi foi Uma Noite em 67, divertido mergulho no Brasil de uma época em que todos eram moços, todos fumavam sem parar e todos se importavam. Que fim levou aquele Brasil?

Foi um ano de bons diretores fazendo menos do que se esperava deles. A perspectiva de um Robin Hood dirigido pelo Ridley Scott era entusiasmante, mas o filme – talvez devido ao peso do Russel Crowe no papel principal – não decolou. Gostei do Ilha do Medo, mas estou chegando naquela idade em que as coisas precisam ser muito bem explicadas, e o Scorcese deixou muitas pontas soltas no seu filme para os da minha faixa.

O que dizer então de A Origem, indefensável título brasileiro de Inception, em que as pessoas sonham que estão sonhando e acordam para descobrir que foi tudo um sonho dentro de um sonho e que ainda estão sonhando e eu ainda não sei se vi ou se sonhei?

E eu não aguento mais efeitos especiais sensacionais. Quanto mais sensacionais, mais eu resisto, e os de Inception são especialmente ofensivos de tão bons.

Oliver Stone trouxe de volta o Gordon Gekko na continuação do Wall Street para mostrar que ganância ainda é bom se esconde um bom coração de pai, Roman Polanski fez um apenas passável O Escritor Fantasma cheio de furos no roteiro, e o novo Woody Allen merece a opinião de todo o mundo, nem elogio nem crítica: é um Woody Allen, o que mais há para dizer?

Melhor mesmo foi o argentino O Segredo dos Seus Olhos, apesar de algumas inverosimilhanças, principalmente pela presença radiante da Soledad Villamil, o sonho de consumo do ano de muitos homens, inclusive da minha faixa.

domingo, 26 de dezembro de 2010


FERREIRA GULLAR

E continua chovendo...

Foi numa visita de Vinicius que lhe mostrei o retrato e, como ele disse ter gostado, dei-lhe de presente

EM 1975, em Buenos Aires, dei a Vinicius de Moraes um quadro pintado por mim. Mas foi o de menos, tantas outras coisas que aconteceram naquela época. Embora já conhecesse Vinicius de antes, em Buenos Aires, quase dez anos depois, é que nos tornamos amigos.

E a amizade se consolidou mesmo depois da manjada leitura do "Poema Sujo", que fiz, a pedido dele, na casa de Augusto Boal. Como se sabe, me fez gravar o poema numa fita e o trouxe para o Brasil.

Naquela ocasião, Vinícius começava a namorar uma argentina, bem mais jovem que ele e, por causa disso, mudou-se provisoriamente para Buenos Aires, instalando-se num apart-hotel, no centro da cidade. Desse modo, mantinha-se a salvo de qualquer reação da outra namorada, uma bela mulata baiana, com quem vivia em Salvador.

Essa permanência do poetinha na Argentina tornou frequentes nossos encontros e, mais ainda, porque recebeu a encomenda de uma editora francesa para fazer o texto de um álbum fotográfico do Rio de Janeiro. Sabendo de minha situação financeira periclitante, convidou-me para escrever o livro com ele.

Foi então que os militares derrubaram o governo de Isabelita Perón e instauraram mais uma ditadura na América Latina.

Dias depois, Tenório Júnior, o pianista do show que Vinicius apresentava ali, desapareceu.

Embora casado, Tenório Júnior viera com uma namoradinha, que conheci no apart-hotel de Vinicius, naquele dia em que me falou do sumiço do pianista. Pedira a ajuda do ex-genro, alto funcionário da embaixada brasileira, que nada conseguira. É que a ditadura militar recém instaurada prendera e executara muita gente e mantinha esses fatos em sigilo.

Diante disso, ofereci a ajuda que estava a meu alcance: consultar uma vidente que havia localizado um filho meu, desaparecido, um ano atrás. Como o telefone da vidente não estava comigo, teria que ir a meu apartamento e, de lá, ligar para ela. Assim, acompanhado de Maria Julieta, filha do poeta Carlos Drummond, que naquela época trabalhava na Argentina, e da namoradinha de Tenório Júnior, segui para lá e liguei para dona Haydé, a vidente.

Após dizer-lhe o nome completo do desaparecido, ela me informou que o pianista deveria estar inconsciente ou morto, uma vez que não conseguia contatá-lo .(É que esse tipo de comunicação se faz de mente a mente). Em seguida, para meu espanto, advertiu: "Diga a essa mocinha, namorada dele, que está aí com o senhor, que trate de ir embora para o Brasil, enquanto é tempo".

Como ela podia saber da moça? Mistério que a razão não explica. No dia seguinte, me deu a notícia final: Tenório Júnior tinha sido espancado até a morte por policiais, numa boca de fumo, onde fora comprar cocaína. Disse isso a Vinicius, que chorou.

Enquanto isso, sua namorada baiana recorria às entidades do candomblé para ver se o separava da rival argentina. Como os pais de santo não conseguiram resolver o problema, viajou para o Rio, entrou no apartamento do poeta e, lá, sobre a cama de casal, fez rezas e depositou fetiches, que também de nada adiantaram.

Vinícius trouxe a argentina para o Rio e com ela viveu um intenso, ainda que efêmero, romance.

Mas foi numa visita que me fez, ainda em Buenos Aires, que lhe mostrei o autorretrato e, como ele disse ter gostado, dei-lhe de presente. Nunca mais vi o quadro, que ele trouxe para o Brasil. Se o deu alguém, não sei.

A verdade é que, recentemente, minha amiga Guguta Brandão me informou que o cineasta Ruy Solberg era o atual proprietário do quadro e decidira dá-lo a mim de presente. E o fez num almoço com muitos amigos, na casa de Vera e Zelito Viana, há umas três semanas.

Quase uma solenidade, que me comoveu. Foi como se uma estrela, que se extraviara, voltasse do fundo da vida e me pousasse nas mãos. "Ao ouvir você na Flip, pensei: tenho que devolver o quadro ao Gullar, que é seu legítimo dono", disse-me ele. Gente fina, esse Ruy Solberg. E Zelito, de gozação: "Se fosse eu, não devolvia".

Outro dia foi a revista de Artaud, que voltou a minhas mãos, agora o autorretrato. Continua a chover na minha horta...

DANUZA LEÃO

"Guarda meu lugar, tá?"

Apesar de sua lealdade ao presidente, esperamos que Dilma comece a governar com a sua cabeça, e rápido

TEMOS UMA NOVA PRESIDENTE que conhecemos pouco, mas que dizem ser mandona -e tem cara; ótimo. Tomara que não só mande, como seja bem durona e não passe a mão na cabeça de nenhum de seus auxiliares que faça algo de errado.

E que também apareça às vezes no Congresso, de surpresa, para que os deputados saibam que tem alguém atento aos absurdos que fazem. Tiririca, inclusive.

Dilma não parece ser nem vaidosa nem exibida. É sóbria, e duvido que vá fazer a simpática e dizer gracinhas sem graça alguma, para que os bajuladores riam, como sempre fazem, quando os poderosos abrem a boca. Tem a seu favor: trabalha -arrisco dizer- com gosto, como aliás é a obrigação de todos os presidentes, mas que nem todos fazem.

No dia da diplomação seu discurso foi curto, falou sem gesticular nem apontar ameaçadoramente o dedo, seu vestido não era nem vermelho nem verde e amarelo, estava emocionada, mas contida. Enquanto o ministro Ricardo Lewandowsky falava, ela ouvia, mas seus olhos estavam longe, bem longe; parecia estar repassando sua vida inteira, como se estivesse vendo um filme -e que filme.

Apesar de sua confessada lealdade ao presidente, esperamos que comece a governar com a sua cabeça, e rapidinho; afinal, as pessoas podem ser leais e pensar de maneira diferente. Uma boa notícia é que Lula vai descansar (e nós dele) durante um tempo, e espero que 2011 nos traga a felicidade de abrir os jornais de manhã e encontrar menos denúncias de corrupção nas áreas do governo. Seria ingenuidade querer não encontrar nenhuma.

Não votei em Dilma, mas faço votos para que ela faça um bom governo, e que seja implacável com tudo de errado que encontrar no país. Sua escola foi o PDT, do saudoso Brizola, mas ela sabe como o PT chegou ao poder, alardeando ser "o partido que não rouba e não deixa ninguém roubar"; é isso que queríamos.

Que ela se mostre firme como dizem que é, e chegue logo o dia de dizer seu primeiro NÃO aos pedidos dos Sarneys da vida, dos partidos em geral, inclusive o PT, e também aos de Lula -e que a herança lhe seja leve.

Dá para entender que nesse primeiro momento não deu, mas essa hora vai ter que chegar, e quando isso acontecer -se acontecer- vou começar a acreditar em todas as qualidades que dizem que ela tem. Dilma vai ficar de olho no Brasil, mas o Brasil já está de olho em Dilma.

Presidente nova, vida nova, vamos ser otimistas, vai dar tudo certo. Está fazendo muito calor para ouvir Lula continuar falando da crise do Oriente Médio, que o Brasil deve ter assento no Conselho de Segurança da ONU, indo à UNE, ao sambódromo, ao Morro do Alemão, abraçar Zeca Pagodinho e ameaçar com 2014 -e ainda vai ter mais. Mas, como disse Chico Buarque, vai passar; aliás, já está quase.

Quanto ao ministério, a cada nomeação, mais igual fica, e se tudo se passar como espera Lula, a ministra da Cultura do próximo governo poderá ser escolhida entre Ivete Sangalo e Alcione -indicação de Sarney.

Quem vai dar o tom no Alvorada é a mãe da presidente. Segundo ela, a verdadeira Dilma é ela; a filha é Dilminha. Dilma (mãe) está inteiraça, e parece ser alegre, falante e vaidosa. Melhor, impossível.

Felicidades, Dilminha; desculpe a intimidade, mas é só hoje.

danuza.leao@uol.com.br

ELIANE CANTANHÊDE

Quem devassa devassado será

BRASÍLIA - Sua privacidade é devassada quando você vai ao banco, ao supermercado, ao shopping, ao próprio escritório, ao apartamento de um amigo, ao consultório médico, a uma repartição pública, a uma embaixada, e até quando simplesmente anda pela rua.

As câmeras estão por toda a parte, desde a portaria até corredores e salas dos prédios, e raramente faltam no elevador. Até suas partes íntimas estão à mostra em alguns aeroportos de países que se acham donos do mundo.

Essas câmeras indiscretas têm lá sua serventia. Num exemplo doméstico e recente, foram elas que derrubaram a versão dos vândalos que espancavam jovens na Paulista e reconstituíram a verdade para a polícia, para a Justiça e até para as famílias desorientadas. Contra imagens, não há argumentos.

Portanto, segurança é bom e todo mundo gosta. Mas, se bisbilhotam nossas rendas, nossas contas, nossas digitais, nossas companhias, nossas falas, nossos atos e nossos passos, nós também temos o direito de bisbilhotar quem nos bisbilhota.

Governos e organizações invadem nossa privacidade, e nós queremos invadir a privacidade deles. O que eles sabem e o que decidem nos dizem respeito diretamente.

Imagine só o que o cidadão do mundo ficaria sabendo se o WikiLeaks tivesse quebrado o sigilo dos telegramas e das mensagens do Pentágono e do Departamento de Estado dos EUA à época da invasão do Iraque... Muitos abusos e principalmente muitas mortes poderiam ter sido evitados.

Justamente por isso Julian Assange, do WikiLeaks, foi eleito "homem do ano" do "Le Monde" francês e do próprio mundo. Ele humilhou a maior potência, expôs o ridículo da correspondência diplomática e principalmente equilibrou o jogo de esconde-esconde.

Quem devassa devassado será. Isso vale para nós, meros mortais, e passa a valer para eles, que se julgam os deuses do Universo.


26 de dezembro de 2010 | N° 16561
MARTHA MEDEIROS


A vida em um flash

O que valoriza nossas ações não é a ansiedade: é a entrega

O ano passado passou tão apressado/eu sei que foi um corre-corre-corre danado.... E pensar que Rita Lee gravou esta música, Corre-Corre, há 30 anos, quando nem corríamos tanto assim. Ou será que esta impressão de vivermos com pressa vem desde sempre?

Tudo do que reclamamos hoje já foi reclamado um século atrás, e não duvido que daqui a cem anos as pessoas digam: “No início dos anos 2000 a vida era tranquila, não havia esta urgência de hoje”.

Eu não sei quais serão as urgências futuras, mas conheço bem as nossas. Temos relógios digitais espalhados pela cidade nos lembrando que faltam 10 minutos para a reunião começar, sete minutos para o banco fechar, dois minutos para a aula do seu caçula terminar: o que você ainda faz aí, no meio da rua? Corra.

Se não são os relógios, são os espelhos. Impiedosos, avisam: você não tem mais 15 anos. Nem 20. Nem 30. Se quiser ter um filho, apresse-se. Não importa que ainda não tenha encontrado um amor estável, arranje qualquer pessoa, mas, simplesmente, apresse-se.

E o espelho segue avisando: você não tem mais 35. Nem 40. Nem 45. O futuro está encolhendo a sua frente. O que está fazendo aí parado no mesmo casamento, parado no mesmo emprego, parado em frente à tevê? Reparou como todo mundo se diverte lá fora? Não sabe que vai morrer um dia?

Sim, sabemos que não somos eternos. Os telejornais não fazem outra coisa a não ser nos lembrar disso, mostrando cenas sortidas de violência e cultivando nosso medo dia após dia. Ou então são os manuais de autoajuda e matérias de revistas que ordenam: aproveite o momento, aproveite a vida! E aproveitar a vida passou a ser sinônimo de algo que tem que ser feito emergencialmente, ou você estará jogando a vida fora.

Calma.

Nem sempre é rentável esta economia de tempo: chegar mais rápido, fazer mais rápido, consumir mais rápido. O que sobra em nossas mãos? Coisa nenhuma. Nem mesmo a lembrança do que foi realizado, só uma vaga sensação do dever cumprido, como se fôssemos soldados a serviço do calendário.

O que valoriza nossas ações não é a ansiedade: é a entrega. E entrega requer um certo relaxamento. Tempo para falar, para ouvir, para fazer, para desfazer, e fazer de novo, até acertar. Tempo para si, para o outro e para o nada.

Fazer nada virou a tarefa mais angustiante para o ser humano esquizofrênico de hoje. Não é à toa que há um bom número de pessoas que prefere não tirar férias: como preencher um dia livre?

Nesta cultura atual do “não desperdício”, pobre daquele que deitar o corpo no sofá, colocar uma música para tocar e desligar o telefone. Terá que se entender com a culpa.

Dedicação, cuidado, foco, tudo isso demanda uma certa introspecção. Um pouco de resguardo. Conectar-se com os próprios pensamentos e emoções é exercício dos mais produtivos. É quando a gente, em silêncio, encontra as respostas para nossas inquietações e descobre os melhores caminhos para atingir nossos objetivos.

Pressa exige atenção para o lado de fora, apenas. E o lado de dentro? Neste corre-corre danado, talvez o que mais estejamos fazendo é justamente perder tempo.


26 de dezembro de 2010 | N° 16561
PAULO SANT’ANA | CLÁUDIO BRITO (INTERINO)


O dia seguinte

Depois das viagens e entregas da noite de sexta-feira e alguma coisa que ficou para ontem, Papai Noel está de volta à Lapônia. Seus olhos se espicham até o trenó ainda com alguns poucos pacotes que não entregou. As renas descansam. Nicolau, Noel ou Clauss, não importa como o chamam em cada lugar, revisa toda a correspondência. Faz um balanço. Na gaveta mais alta de sua mesa de trabalho, guarda as cartas completamente atendidas.

A maioria, felizmente. Bicicletas, videogames, bolas, bonecas e até computadores ele entregou. Celular, então, uma fábula, vários carregamentos. Foi e voltou dezenas de vezes. Deu conta do recado.

Quer dizer, fez o que podia fazer. Viu gente sem presente e não teve como corrigir. Havia carta não atendida e soube de pessoas que não mandaram carta alguma, outras que fizeram os pedidos, mas, não se sabe como, extraviaram-se. A gaveta do meio está cheia desses casos.

Noel conforma-se. Está acostumado às desigualdades. Tenta, todos os anos, alguma compensação. Vai às reuniões em que a brincadeira do amigo-secreto ou a distribuição da generosidade equilibram os pratos da balança da justiça social. Sorri. Logo depois, repassando na memória algumas cenas que viu em suas viagens, chora.

Por mais que tente convencer os povos a que se curvem ante valores como honra, dignidade, lealdade, tolerância, amizade e solidariedade, ainda encontra quem não creia na felicidade, na paz e na simplicidade como bons modos de viver. Noel chora outra vez.

Na gaveta bem de baixo, estão guardadas as cartas que Noel escreveu para o Papai Noel dele. Mágoas sem ressentimentos, mas algumas boas doses de tristeza preenchem os papéis. Seus desencantos vão para o fundo de um gavetão que nunca será aberto, a não ser para receber novas dores. O Noel dele é duro, não vem.

Ele escreve e armazena para saber que não lhe cabe ser entusiasmado indevidamente. Para cada boneca ou bola que entregar, outras tantas faltarão. E não deve sofrer demais por isso. É preciso sobreviver à pieguice e à lamentação. Só assim poderá ter forças para, no ano que vem, fazer tudo de novo. Se não for ele, quem fará? Nem sorrisos demais, nem choro exagerado. Noel não é um fraco, sem ser um super-herói.

Se eu pudesse, ajudaria o Papai Noel. Se cada um pudesse, resolveríamos muita coisa e o velhinho seria só alegria. Na verdade, podemos. Não é preciso muito para ajudar Noel a ajudar a gente.

Coragem, fé, esperança, aposta nos sentimentos mais nobres dos humanos e um imenso acordo mundial pela paz. Banir o crime, impedir a traição. São boas propostas, podem ser realizações daqui para a frente. Só depende de nós.

Está certo, depende também do Papai Noel, mas com ele se pode contar sem vacilos. Nós é que cambaleamos às vezes. Vamos encarar novas atitudes, vamos repelir o que não presta, jogar fora o que é ruim. E, daqui a um ano, Papai Noel vai ter apenas uma gaveta para encher: a das cartas plenamente atendidas.

Ainda que seja otimismo demais, penso assim, para desenhar a meta a perseguir. Não sei de outro jeito para chegar lá. Feliz ano-novo para nós e para Noel, que sai cansado e triste do Natal. As coisas vão melhorar. Acredite Noel, acredite.


Crer

Há séculos discute-se a natureza desta entidade multipartida, o Papai Noel

O garoto me pediu um cavalo. Eu perguntei “Um cavalinho de brinquedo?” Ele disse: “Não, um cavalo de verdade”. Eu disse que ia ver, mas que seria difícil carregar um cavalo de verdade no meu saco.

Ele ficou me olhando. Depois disse:

– Você não é o Papai Noel de verdade, é?

– Claro que sou. Por que você pergunta?

– Porque no outro xópi tem um Papai Noel igual a você.

– E você pediu um cavalo pra ele?

– Pedi. E ele disse que ia me dar.

– Bom, talvez o saco dele seja maior do que o meu.

– Mas o Papai Noel de verdade é ele ou é você?

O que dizer para o garoto? É que nós temos o poder da ubiquidade, entende? Ubiquidade. A capacidade de estar em mais de um lugar ao mesmo tempo. Onipresença. Pergunte a sua mãe. Só existe um Papai Noel, mas ele está por toda parte. Está em todos os shoppings do mundo.

Cada Papai Noel é a manifestação de uma mesma e única entidade superior. Só muda o nome e o tamanho do saco. Eu sei, é um conceito difícil de entender. Ainda mais na sua idade. Há anos, séculos, discute-se a natureza desta entidade multipartida. Existiu um Papai Noel histórico, que viveu e morreu, mas seu espirito perdurou, e perdura até hoje, porque a sua essência transcendia a sua materialidade.

Sua sobre-existência supratemporal e a-histórica, como a definiria Kierkegaard, depende de uma predisposição da humanidade para ver na sua figura a idealização de um paradigma infantil de bom provedor, e a eternização da infância num “pai” amável que nunca morre, e volta, ciclicamente, todos os anos, ano após ano, na mesma data.

No resto do ano ele reassume a sua imaterialidade mas mantem-se introjetado nos que acreditam nele, controlando suas ações e pensamentos, que serão premiados ou punidos quando da sua rematerialização anual, numa espécie Juízo Final parcelado.

Eu, o Papai Noel do outro shopping e todos os milhares, milhões de papais noéis que surgem nesta época do ano somos apenas caras diferentes do mesmo ente reincidente que traz presente ou castigo, representando uma cosmogonia moral que rege o comportamento humano. Há quem diga que esta entidade que recompensa e pune não passa de um mito infantilizante que aprisiona a razão numa superstição obscurantista. Que Papai Noel não existe. Que eu sou uma fraude. Que o Papai Noel do outro shopping é uma fraude.

Que todos os outros papais noéis do mundo são impostores, que por trás das suas barbas falsas há apenas pobres coitados tentando faturar alguns trocados sazonais com a crença alheia, e enganando criancinhas. Não é verdade. Pode puxar a minha barba. Eu existo, eu...

Nisso o garoto fez xixi no meu colo. Foi levado pela mãe, com pedidos de desculpa. Melhor assim, pensei. Minha explicação só iria assustá-lo. E eu só estaria tentando convencer a mim mesmo.

Sou gordo, tenho uma barba naturalmente branca, sou quase um predestinado para ser Papai Noel de shopping. Mas todos os anos preciso combater minhas dúvidas. Como em qualquer caso envolvendo crença e fé, o pior são as dúvidas. Com o xixi eu nem me importo.

Mas veja como crer é importante. Em seguida sentou no meu colo um homem dos seus 40 anos. Não queria me pedir nada, só queria colo. Tinha estourado o limite do seu cartão de crédito nas compras de Natal e precisava que alguém o consolasse.


26 de dezembro de 2010 | N° 16561
MOACYR SCLIAR


Reinventar-se

Mexer um pouco com nós mesmos pode ser um grande começo de ano, um grande recomeço de vida

Falando do arquiteto Oscar Niemeyer, que quase aos 103 anos resolveu tornar-se compositor e escreveu um samba (verdade que não muito bom), disse um jornal que o grande brasileiro acabava de se reinventar. Reinventar-se: esta é uma palavra que, em 2010, ganhou em destaque em nosso vocabulário.

Explicável: nunca antes na história deste país tantas mudanças aconteceram, a começar pela emergência de uma classe média formada por pessoas que, confrontadas com novas situações, precisam, justamente, se reinventar. E o que significa isso?


Em primeiro lugar, é preciso dizer que há uma diferença entre inventar e descobrir. Descobrir é achar uma coisa que já estava ali, aparentemente coberta ou oculta. Colombo descobriu a América, mas a América existia, ainda que não com esse nome, era habitada por muitos povos – só que os europeus não sabiam disso, e glorificaram essa ignorância com a palavra descoberta que, não sem boas razões, tem sido contestada, como de resto a descoberta do Brasil.

Inventar é outra coisa. Inventar é criar algo que não existia, um dispositivo, uma máquina, uma substância química. Inventar exige conhecimento, exige criatividade, exige imaginação; escritores são, de certa forma, inventores; eles fazem surgir personagens e situações que não existiam.

A invenção pode ter contornos sombrios, como a guilhotina (bolada por um médico, o Dr. Guillotin) e as câmaras de gás dos campos de concentração. Mas em geral inventores são objeto de nossa admiração, e o Nobel é um testemunho disso.


Já reinventar é um termo que tem conotação irônica, debochada: quando dizemos que Fulano reinventou a roda estamos fazendo uma gozação. Mas a partícula apassivadora “se” dá ao verbo um outro, e revolucionário, sentido; o termo, por assim dizer, se reinventa.

Reinventar-se significa deixar para trás o nosso passado, significa transformar nossa vida (nem que seja em pequenos detalhes) e isso pode ser um antídoto decisivo contra o marasmo, contra o desânimo, contra a apatia. De repente, somos outra pessoa.

Um choque? É. Um choque. Mas um choque benéfico.

Reinventar-se: eis aí um bom lema para o ano que se aproxima. Reinventar-se como profissional, como cônjuge, como pai ou mãe ou filho ou filha, reinventar-se como amigo, reinventar-se como cidadão ou cidadã, reinventar-se como pessoa.

Num mundo em que a invenção é um acontecimento contínuo, em que as mudanças se sucedem de maneira vertiginosa, mexer um pouco com nós mesmos pode ser algo muito bom, um grande começo de ano, um grande recomeço de vida.

sábado, 25 de dezembro de 2010


JOSÉ SIMÃO

Ueba! Comi o leitão da Dilma!

E o maldito peru que não acaba? Cada pedaço que você corta parece que o peru aumenta!

BUEMBA! BUEMBA! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República!

E aí, macacada: BOTARAM O PERU PRA DENTRO? Rarará! Ô comilança! Só quero ver no dia 3 de janeiro. Dia Nacional de Fazer Força pra Calça Fechar! Tem que dar três pulos pro jeans entrar!

Por isso que eu tenho inveja da Gisele Bündchen. Ela não precisa encolher a barriga na hora de transar! Eu vou engordar uns 20 quilos e ficar com corpo de atleta. Igual ao Ronaldo. Rarará!

E um amigo me disse que já tá com preguiça de todos os exercícios que vai ter que fazer em 2011! E sabe o que a Dilma fez pra ceia? Assou o Palófi e botou uma maçã na boca dele. Recheado com falofa de aveitonas e pafas! Palófi com falofa. O leitão da Dilma. E depois: Michel TENDER! E na casa dela não teve amigo oculto, teve companheiro clandestino. Rarará!

Essa coluna é dedicada aos sobreviventes do peru! Como todo ano, eu engoli um zoológico: peru, porco, galinha! E tô com a mesma azia do ano passado! Reincidência!

Eu acho que eu tenho um arquivo de azias de Natal. E aquele sanduíche de patê, ketchup e requeijão, em camadas, que a tia traz coberto com um pano de prato úmido, pra não ressecar?!

E o maldito peru que não acaba? Cada pedaço que você corta parece que o peru aumenta. Peru até no café da manhã! Maldito peru! Quero passar um ano sem ver peru. Inclusive o meu!

E uma amiga minha quer ser comida pelo peru! Noite Feliz! E uma amiga descreveu assim o Natal na casa dela: bolo prum lado, brigadeiro pro outro, sanduíches voando e coca derramando. Passou o Natal na zona de turbulência. Tem que apertar os cintos pra passar o Natal na casa dela!

E diz que as praias já estão tão cheias que tem que pegar senha pra entrar no mar. Tem que pegar senha na Prefeitura. Senha 2796: aquela de celulite, fio dental e marca de tatame nas costas, pode mergulhar. PRA SEMPRE! Rarará.

Tem uma amiga que diz o seguinte: até os 50 anos você vai pra praia, depois dos 50 você vai pros Alpes. Passar o ano vestido da cabeça aos pés. Ou então vai pro Irã. Passar o ano de burca. E uma outra amiga diz que não tem corpo nem roupa pra ir pra praia. Porque ela tá fora de forma e detesta estampado.

Nóis sofre, mas nóis goza

Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno! FELIZ ANO NOVO! MACACADA!
simao@uol.com.br

ODILO PEDRO SCHERER

Natal: a festa é de todos

O Natal contagia e faz com que, por um momento, todos fiquem bons, lembrem do próximo, enviem mensagens de paz e deem presentes

O Natal comemora o nascimento de Jesus Cristo, a quem se refaz a origem do cristianismo. Por isso, é festa grande nas comunidades cristãs, com expressões religiosas e culturais exuberantes.

E a eles agrega-se a comunidade humana em geral pelo comércio aquecido, nas manifestações de calor humano e nas tradições populares, não necessariamente religiosas e cristãs. O Natal tornou-se festa para todos. E não é sem razão.

Os cristãos lembram no Natal que o Filho de Deus veio ao mundo e assumiu nossa humanidade, nascendo da Virgem Maria.

Por Ele, Deus manifestou sua bondade para com a humanidade e nos estendeu a mão, tornando-se próximo de nós, assumindo as feições e também as angústias e dores de cada ser humano. A todos trouxe alegria e indicou o caminho para a vida feliz e a realização plena dos anseios humanos.

Proclamamos que o Natal é obra de Deus -"Deus enviou ao mundo seu Filho" (Gálatas, 4,4)-, que deseja unir a si a humanidade: "Deus tanto amou o mundo, que lhe entregou seu Filho único". Não veio para condenar, mas para salvar (cf. João, 3,16). Isso aparece também nas atitudes, na pregação e nas ações de Jesus, sempre à procura da "ovelha perdida", pronto para aliviar as dores das pessoas.

O Natal traz motivos de alegria e de festa para toda a humanidade. O nascimento de Jesus manifestou que Deus ama com ternura e compaixão a todos; também aqueles que não creem, mas buscam luz e sentido para a vida.

E também os que se negam a pensar sequer na dimensão religiosa da existência: são igualmente amados por Deus, que por eles enviou seu Filho ao mundo. Pode-se rejeitar o amor de uma pessoa, mas não se pode impedir alguém de amar...

O Natal contagia e faz com que, por um momento, todos fiquem bons, lembrem do próximo, cumprimentem-se felizes, enviem mensagens de paz e deem presentes...

Multiplicam-se os apelos à superação da violência e à reconciliação; realizam-se ações solidárias incontáveis para aliviar os sofrimentos do próximo, mesmo sem saber quem ele é; intensificam-se gestões em prol da justiça nas relações sociais e internacionais; valoriza-se o que é belo e que toque a alma, amoleça o coração e faça o espírito sonhar...

O ser humano redescobre o que há de bom dentro dele. E como seria bom se fosse Natal todos os dias!

Será a nostalgia de um paraíso perdido ou sinal de um mundo desejado? Nada é mais condizente com o Natal, que a Igreja também comemora como dia da fraternidade universal. O Natal traz o anúncio de que Deus quer reunir a grande família humana num povo de irmãos, em que a solidariedade e o amor ao próximo sejam o modo normal de viver e conviver.

Mesmo assim, o Natal não muda as coisas como por encanto, com um toque de mágica, e o mundo continua a girar; é de se prever que ainda continuem a existir injustiças, guerras, violências, sofrimentos, desonestidades privadas e públicas... E, então, de nada valeu que o Filho de Deus tenha vindo ao mundo? Valeu!

Ele não veio na figura de um anjo de fogo, pronto a exterminar toda resistência, mas na forma de uma criança, de braços abertos, fraco com os fracos, pequeno com os pequenos. Não se substitui a nós, não tira nossas responsabilidades nem suprime nossa liberdade.

Faz-se próximo de nós, não estamos sozinhos no mundo, podemos contar com Ele. Experimentou nossa vida e valorizou tudo o que é nosso; fez-se "Emanuel, Deus no meio de nós"; está ao nosso lado, indica-nos o caminho por onde seguir e a verdade que ilumina o mistério da nossa existência. É motivo para desejar "Feliz Natal" a todos!

CARDEAL DOM ODILO PEDRO SCHERER, doutor em teologia pela Universidade Gregoriana (Roma), é arcebispo de São Paulo.