sábado, 15 de agosto de 2009



15 de agosto de 2009
N° 16063 - CLÁUDIA LAITANO


Ferro-velho da memória

No começo deste mês, o pessoal aqui do jornal recebeu, junto com o contracheque de julho, uma cartinha anunciando que aquele era o último exemplar do comprovante de rendimentos impresso em papel.

A partir de setembro, o envelopinho mensal será substituído por um prático, moderno, ecológico e antitranspirante contracheque virtual. Por mais banal que fosse essa rotina, confesso que senti um leve estremecimento de nostalgia antecipada diante do cancelamento súbito e inapelável do singelo ritual de rasgar o envelopinho todos os meses.

O fim do contracheque me fez pensar na quantidade de hábitos que se tornaram anacrônicos sem que a gente tivesse tempo de, conscientemente, encenar uma breve cerimônia de adeus – coisa que eu fiz com meu contracheque de julho graças à gentil cartinha do departamento pessoal.

A maioria das pequenas mudanças cotidianas trazidas por novas tecnologias atrai nossa atenção para a novidade e não para o que fica para trás.

Todo mundo lembra do primeiro computador comprado a prestações e instalado com orgulho em uma mesa não muito adequada, mas pouca gente sabe dizer qual foi o último texto que datilografou em uma máquina de escrever – um formulário, um trabalho da escola, uma carta? Que disco de vinil, comprado na Galeria Chaves, antecedeu a ousada decisão de instalar um aparelho de CD ao lado do toca-discos?

Que cenas foram guardadas nas últimas fotografias de uma câmera convencional? Todos esses dinossauros tecnológicos saíram das nossas vidas sem muito alarde, enquanto a gente estava distraído tentando entender como funcionava a nova engenhoca.

Mas cada pequeno hábito descartado, mesmo os mais banais, carregam um pouco da nossa história para uma espécie de ferro-velho da memória – lá onde, de vez em quando, a gente pesca objetos para explicar para uma criança como se fazia tal e tal coisa na nossa infância.

Dizem que todas as gerações têm a convicção de que o seu tempo é o mais acelerado de todos e que seria pretensão da nossa parte imaginar que as coisas mudam mais rapidamente hoje do que mudaram sempre. É óbvio que os aparelhinhos ficam obsoletos mais rapidamente, mas se a aceleração não era tão incorporada ao dia a dia dos nossos antepassados talvez as pequenas mudanças se tornassem ainda mais impressionantes e solenes.

Na verdade, é difícil imaginar, a esta altura dos acontecimentos, o que seria capaz de nos impressionar – a não ser, talvez, um skate voador como o do McFly. O que é típico de nossa época é que as mudanças passaram a ser mais evidentemente compulsórias. Não há escolha possível entre o filme e o digital, a máquina de escrever e o computador, o contracheque de papel e o virtual.

Mas não foi sempre assim. Meu avô morreu com quase 90 anos, no final dos anos 80. Nunca abandonou a navalha com que fazia a barba todos os dias, nem substituiu sua rolleiflex por uma câmera mais moderna. Simplesmente preferiu ficar com o que já conhecia e estava acostumado – e não há registro na família de que fosse um rebelde ludita.

Pois o seu Orlando acharia muito engraçado se tivesse vivido para ver que, no comecinho do século 21, iam começar a fabricar minúsculas câmeras digitais de cinco megapixels com a exata mesma cara da rolleiflex que ele usou até a última pose.

Chama-se isso de “visual retrô” – uma maneira estilosa de admitir que o preço da aceleração é a eterna nostalgia.

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