terça-feira, 25 de agosto de 2009



25 de agosto de 2009
N° 16073 - MOACYR SCLIAR


Medicina exclui a mentira

Nos vários depoimentos acerca do médico especialista em fertilização (mas com a licença suspensa) Roger Abdelmassih, houve um que a mim particularmente chamou a atenção.

Tratava-se de uma mulher que foi à consulta por problema de infertilidade. Segundo o relato dela, Abdelmassih levantou a possibilidade de uma gravidez com óvulos fertilizados de outra mulher, o que a paciente recusou. Ele então teria dito algo como: “Mas seu marido nem precisa saber disso”. Ou seja: estava sugerindo que a mulher ocultasse do esposo o que, na realidade, seria o procedimento. Curto e grosso: uma mentira.

Uma mentira piedosa, dirão os (certamente poucos) defensores de Roger Abdelmassih, mas uma mentira, de qualquer modo. Uma mentira introduzida numa relação a dois que sempre tem de se basear na autenticidade, na honestidade.

A mulher recusou a proposta. E ao fazê-lo estava, provavelmente sem o saber, reafirmando um princípio básico da profissão médica e, em geral, de qualquer atividade que se considere ética: em primeiro lugar deve estar a verdade.

O que está dentro do espírito de um antigo documento que, há muitos séculos, vem sendo adotado pela medicina como um guia de conduta. Trata-se do juramento de Hipócrates, atribuído ao médico grego, nascido no quinto século antes de Cristo, e que é considerado o pai da medicina.

Um destaque que mereceu não tanto pelos tratamentos que aplicava – naquela época os recursos científicos e tecnológicos praticamente não existiam –, mas por sua extraordinária capacidade de observação clínica e, principalmente, pelos novos caminhos que a partir de sua obra se abriram. Até então, a medicina era uma atividade mágica e religiosa, praticada por feiticeiros ou sacerdotes que, supostamente, mobilizavam deuses e exorcizavam demônios para curar enfermidades.

Hipócrates, ao contrário, via a doença como um fenômeno natural, resultante das condições de vida e de trabalho da pessoa. Ou seja: recusou a ilusão mágico-religiosa e optou pela verdade. Ao fazê-lo, estabeleceu um paradigma válido até hoje.

Mas não é só isso. No juramento há também recomendações de conduta, e uma delas é a explícita proibição de relações sexuais com pacientes. De novo: não se trata só de uma recomendação moral, é uma questão de afirmação da verdade.

Hipócrates, ou quem, sob seu nome, escreveu o texto, sabia que seria muito fácil para um médico aproveitar-se da aura de poder que envolve a profissão e da ansiedade e da angústia de pacientes, para o sexo fácil. Há uma diferença muito grande entre esta situação, que, inevitavelmente, é doentia, e o encontro amoroso entre um homem e uma mulher livremente motivados por seus sentimentos e emoções. É isto que o juramento salienta.

O progresso da medicina tem sido simplesmente fantástico. Para ficar com um único exemplo: o crescimento da cirurgia robótica. Guiados pelos cirurgiões, robôs fazem prostatectomias, tiram tumores de rim, transplantam fígados, com um custo mais baixo e maior precisão.

Mas robôs não podem estabelecer um vínculo emocional, humano, com os pacientes. Para isto, os médicos são necessários; e para isto a verdade e a honestidade são fundamentais.

Coisa, aliás, que os robôs, arautos sem o saber do juramento de Hipócrates, nos confirmam. Robôs não mentem. Nem mantêm relações sexuais com pacientes.

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