domingo, 23 de agosto de 2009

Vítimas do assédio médico

O que é normal e o que é abuso em um exame ginecológico? Se o médico pedir que eu fique nua, obedeço? Quem vai acreditar que o doutor passou dez minutos examinando meus seios? Tire suas dúvidas e se proteja do assédio sexual no consultório.

Edição Daniela Folloni / Texto Isabel Malzoni / Foto Gustavo Arrais



Recentemente, NOVA disparou uma pesquisa para 2 mil leitoras a fim de colher relatos sobre abuso sexual nos consultórios. Em menos de 24 horas, recebemos mais de 20 depoimentos de mulheres que já passaram por situações constrangedoras ao ser examinadas por um médico.

Ficamos chocadas, para não dizer indignadas, ao constatar que essa conduta pode ser mais comum do que se imagina. Pior ainda é saber que profissionais com uma postura nada ética continuam clinicando e tirando proveito de sua posição para colocar as manguinhas (e sabe-se lá o que mais) de fora sem o menor respeito por suas pacientes.

Qualquer uma de nós está sujeita a cair nas mãos de um tipo desses. NOVA vai ajudar você a ficar alerta, se proteger e, se for o caso, denunciar o molestador.

Sem o avental, nada feito

Mulheres também sofrem em silêncio quando não sabem direito como o exame deve ser realizado. Só depois de três anos, Márcia, 36 anos, descobriu que o ginecologista usava uma técnica nada habitual em mulheres de sua idade. A ficha caiu num papo com as amigas.

Elas ficaram admiradas ao saber que esse homem introduzia o dedo em seu ânus alegando que precisaria levantar o útero para verificar a existência de nódulos.

“Lembro que ele conversava comigo durante o procedimento, creio que para tentar me distrair. Procurei outro profissional e fui informada que esse tipo de exame só era recomendado a idosas e obesas.” Aliás, as maiores dúvidas sobre o que é normal e o que é abuso surgem no ginecologista. E esse especialista é campeão de acusações.

A primeira pesquisa brasileira sobre o tema, feita pelo pneumologista Júlio Cezar Meirelles Gomes, mostra que, entre os ofensores, 20% são ginecologistas, 8,2% clínicos-gerais, 7,9% ortopedistas e 5,5% psiquiatras. O Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) alerta ainda que o molestador tem, na maioria das vezes, entre 40 e 60 anos, é casado e adota discurso religioso.

Para ficar cem por cento segura de que não está sendo abusada, saiba como é feito um exame ginecológico de rotina. Vamos lá: primeiro, o médico pede que tire a calcinha e vista um avental. Depois, a fim de verificar se há nódulos nos seios, apalpa suas mamas — é apalpar, e não acariciar! Em seguida, você apoia as pernas no suporte da cadeira.

Ele separa os pequenos lábios vaginais e introduz dois dedos para examinar. Sempre está de luvas e o procedimento é rápido. Suspeite de toques no clitóris ou outra manipulação estranha. “Se duvidar que aquele exame é de fato necessário ou se sentir constrangida, diga ao médico que interrompa”, orienta Sônia.

O doutor pediu para que fique completamente nua? Recuse-se. Segundo o Cremesp, a consulta de nenhuma especialidade exige isso. O correto é, na hora de tirar a roupa, receber um roupão ou avental e poder se trocar em local separado. Você também tem direito de pedir a presença de uma enfermeira na hora do exame médico.

E de ir acompanhada de uma amiga ou marido. Como todo cuidado é pouco, também vale só escolher profissionais recomendados por suas pacientes. E pular fora quando perceber qualquer atitude incabível, como fez a publicitária Alessandra, 33 anos. “Achei estranho quando o odontologista elogiou meu perfume. Preferi me consultar com outro, por garantia.”

ACONTECEU. E AGORA?

O primeiro passo é procurar uma Delegacia de Defesa da Mulher. Veja os seguintes:

DENUNCIE

O Conselho Regional de Medicina de seu estado deve saber do caso. Embora os processos éticos demorem para ocorrer, é essa instituição que tem como repreender publicamente e ainda cassar o médico. A denúncia é feita por escrito e, depois de aberta a sindicância, você pode ser chamada para dar seu testemunho.

O Cremesp criou no final de 2007 um grupo para investigar com mais atenção casos de assédio e abuso sexual. Apenas em São Paulo existe também um conselho técnico para denúncias desse tipo. E sua intenção é descobrir métodos para diminuir o número de arquivamentos por falta de provas.

PERSISTA

Crimes sexuais exigem a representação da vítima, ou seja, vai ser preciso que você queira manter a investigação. A partir daí, tenha paciência. Processos como esse não costumam chegar ao juiz em menos de seis meses.

UNA-SE

A reincidência é um dos fatores que mais atuam a favor das vítimas. Você pode encontrar outras mulheres que passaram por situação semelhante e, juntas, processá-lo. Assim, ajuda a evitar que casos de abuso no mesmo consultório continuem a ocorrer.

A paciente e o monstro

É difícil imaginar que aquele doutor em quem você confia a ponto de se despir para ser examinada tem outra intenção que não a de resolver o seu problema de saúde. Por isso, apesar de incomodada com um toque diferente ou um exame suspeito, pode achar que foi tudo coisa da sua cabeça. “O fato de a situação ser inusitada paralisa.

Afinal, espera-se que o médico tenha o papel de protetor”, explica a psicóloga jurídica Sônia Rovinski, autora do livro Danos Psíquicos em Mulheres Vítimas de Violência (Lumen Juris). Justamente por isso, Marcela, 20 anos, demorou a perceber as más intenções do oftalmologista: “Ele fez perguntas sobre a minha vida pessoal.

E, quando iniciou o exame para detectar o grau de miopia, encostou o pênis na minha perna, no braço... Não tive reação, apenas fiquei tentando me esquivar, não sabia se corria ou gritava”.

Vergonha e medo de se expor

Entre 2003 e 2008, o Cremesp recebeu 183 queixas de abuso sexual. Mas o número deve ser bem maior. Nenhuma das leitoras que entraram em contato com a redação, por exemplo, levou sua história à Justiça. Por quê? “Ela sente que já passou por muito constrangimento e que, se denunciar, seus amigos e colegas de trabalho vão ficar sabendo.

Terá de repetir a cena para o júri, e tudo isso com um grande risco de não dar em nada”, fala a psicóloga Sônia. Pesa também o fato de se sentir culpada. “Ela não tem reação na hora e depois fica pensando no que poderia ter feito para evitar”, continua a especialista.

Para completar, quando existem apenas o médico e a paciente dentro do consultório, é complicado provar o que aconteceu. Por esse motivo, 65% das denúncias recebidas pelo Cremesp foram arquivadas. Carla, 28 anos, de Brasília, fala da sensação de impotência: “Quem acreditaria que o gineco massageou meus seios e ficou analisando minha tatuagem na virilha?”

Para não ficar de mãos atadas, a delegada Márcia Salgado, coordenadora das Delegacias de Defesa da Mulher, orienta gritar na hora.

“Assim, quem está do lado de fora é envolvido”, diz, lembrando de um médico que, há 15 anos, foi condenado à prisão por atentado violento ao pudor, com base no testemunho da vítima e da enfermeira. Tomara que mais médicos monstros tenham esse destino.

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