quarta-feira, 19 de agosto de 2009



19 de agosto de 2009
N° 16067 - DAVID COIMBRA


A vitória da delicadeza

A folhas tantas do show em que comemorou cinco décadas de carreira, o Rei desabafou. Disse que gostaria de só ter cantado músicas de amor bem-sucedido neste tempo todo, só amores que deram certo, só alegrias e rosas, o som de violinos ao fundo. Mas não. A vida não é assim, bicho. Mesmo ele, mesmo Erre Cê, sofre por amor.

E Roberto Carlos sofreu, admitiu-o sob as luzes do palco. Uma época em especial: 1986. Zico perdia o pênalti na partida decisiva contra a França, nós assalariados usufruíamos das delícias do Plano Cruzado, e o Rei se angustiava por uma paixão irresolvida.

Aí ele compôs uma música. Contou sua história e cantou-a na apresentação porto-alegrense. Eu não a conhecia, distraído que sou da obra do Rei concebida após os anos 70. Uma música bela e compassiva, na qual o verso mais forte, e se trata de um verso forte, pede à mulher amada:

Do fundo do meu coração
Não volte nunca mais pra mim.

Uau! Fiquei pensando: quem seria essa tigresa que feriu tão profundamente o coração do Rei? Calculei: 1986. Só pode ser Myriam Rios. Tem lógica. Foi Myriam Rios quem o deixou, depois de 10 anos de relacionamento. Formavam o casal 20 daquele tempo. O Conjunto Impacto chegou a fazer sucesso nas reuniões dançantes cantando:

Queria ser como o Roberto
E ter a Myriam sempre por perto
Viajar no meu iate
Coçando e tomando mate.

Pois bem. Roberto não teve a Myriam sempre por perto, e isso dilacerou-lhe a alma, e o levou a tecer uma linda canção. As mulheres na plateia uivavam enquanto o ouviam cantar sua dor com a suavidade de costume. Duas ao meu lado alcançaram o êxtase, tinham convulsões de prazer, ganiam feito labradoras adolescentes.

Como pode, pensei, depois de 50 anos, como pode Roberto Carlos ainda enlevar a tal ponto o público? Mais: como pode RC manter cativo um público que, só em Porto Alegre, somou 50 mil pessoas em cinco dias?

Aí está: o reinado cinquentenário de Roberto Carlos é a vitória da delicadeza. E uma prova de que o caráter do brasileiro, se nem sempre é afável, pelo menos preza a afabilidade. O cantor-símbolo de um país diz muito do que é esse país.

Os Estados Unidos não são o brega glamouroso de um Élvis, de um Michael Jackson? A Inglaterra não é o produto da rebeldia que explode da pressão da tradição, como são os Beatles e os Stones?

Os argentinos não são dramáticos como um tango de Gardel? A França não é a sofisticação afetada de uma Piaf, de um Charles Aznavour?

Pois é. E por aqui, nada vinga sem que seja usada a gentileza eterna de um Roberto Carlos, sem a ponderação, a paciência e a tergiversação. Sem que seja usada a política, portanto. Casos exemplares de governantes fracassados são casos de fracassos políticos, mais do que fracassos administrativos:

Collor antes, Yeda agora. Lula, ao contrário deles, é um político nato. Foi acossado por denúncias tão graves quanto as que apodrecem o governo Yeda, e saiu incólume de todas elas. Por quê? Porque Lula conversa, trama alianças, protege-se e, suavemente, sempre suavemente, avança.

Eis a fórmula da CBF. Uma entidade que era odiada pelos clubes e pelos torcedores, tanto que clubes e torcedores se rebelaram. Foi fundado o Clube dos 13, que seria a libertação dos grandes clubes brasileiros, os que representam a maior parcela da torcida do país, os que realmente importam.

Tudo ia mudar, e isso aconteceu exatamente na época em que o Rei sofria e, sofrendo, pediu que ela nunca mais voltasse pra ele. Justamente nessa época o futebol brasileiro ia mudar.

Não mudou. Porque à crueza da rebelião dos clubes a CBF reagiu com uma resistência maleável, com uma solidez macia e, por isso mesmo, irresistível. Com política reagiu a CBF. E venceu.

É assim que se vence entre os súditos de Roberto Carlos.

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