sábado, 29 de agosto de 2009



30 de agosto de 2009
N° 16079 - DAVID COIMBRA


A doçura de um tratamento de canal

Às vezes me dá uma saudade de fazer um tratamento de canal... Por causa do Doutor Vuaden. Dois dentistas mudaram minha vida, o Doutor Ramão e o Doutor Vuaden.

O Doutor Ramão aplica uma anestesia que é como se você tivesse a boca beijada pela Megan Fox. Manja a Megan Fox, a nova Mulher-Gato? Oh, quantas fantasias infanto-juvenis tive com a Mulher-Gato, quantos sonhos sensuais irrealizados, e agora ela será encarnada pela Megan Fox. Megan Fox, maaan. Procure no Google Imagens.

É doce assim uma anestesia aplicada pelo Doutor Ramão. E um tratamento de canal feito pelo Doutor Vuaden, Cristo!, que prazer! O Doutor Vuaden é um homem que, à primeira vista, pode assustar. Um alemão de quase dois metros de altura, poderia ser quarto-zagueiro do Bayer Munich.

No entanto, o Doutor Vuaden é todo discrição. Sua voz é ronronada, seus movimentos são suaves e a mão com que ele torce o nervo de um canino é uma mão de Cinderela, com artelhos de fadinha, com falanges, falanginhas e até falangetas delicadas como as de uma debutante. Um tratamento de canal do Doutor Vuaden é um afago de mãe.

Mas o que mais me faz sentir saudade do Doutor Vuaden e do Doutor Ramão é a filosofia. Porque, quando me instalo numa cadeira de dentista, sou um Platão, um Spinoza, um Kant. Ali, de boca aberta, com o sugador pendurado na comissura dos lábios, compreendo a verdadeira dimensão da existência. Ali sei o que é o ser humano: é um ser eminentemente físico.

Físico, nada mais do que isso.

Não me venha com teorias sofisticadas, não me venha com lógicas intricadas, não me venha com toda a psicologia de Freud e Lacan, com as reflexões de Schopenhauer, com os dilemas sociais de Marx e Engels ou com a literatura de Balzac e Dostoievski, não me venha com nada disso se eu estiver com uma dor de dente. Eis a realidade: se você está com um pré-molar inflamado, aquela pequena área de meio centímetro quadrado é o centro do universo, é todo o seu ser.

Nada mais importa, nada vale, nenhuma consideração é procedente, se você está sentindo dor física. A moral, o espírito, a inteligência são meros acessórios. O mundo só voltará a ser belo quando passar a enxaqueca.

Tudo é muito simples, afinal. O mundo é simples. É físico, em sua essência. É com esse raciocínio reto e liso que se tira proveito da luz de cada dia. Uma alegoria? O futebol. O futebol sempre se presta a alegorias. Lembro do sistema de jogo do Huracán, nosso time do IAPI. Dois zagueiros brabos lá atrás, o Larri e o Manga. Todo mundo tinha medo do Larri e do Manga. Quando algum desavisado vinha para cima de nós em qualquer viela entre o Cemitério São João e a Zivi-Hércules, bastava dizer:

– Nós somos amigos do Larri e do Manga. Pronto. Sem problemas. Ser amigo do Larri e do Manga era salvo-conduto.

Antes do Larri e do Manga, debaixo do travessão, tínhamos um goleiro de dois metros de altura e bigode, o Raimundão. O Raimundão, quando ia jogar, levava junto uma capanga. Entrava em campo todo fardado de goleiro, com a capanga debaixo do braço.

Colocava a capanga no fundo da rede. Os adversários ficavam olhando aquilo. Sabiam que, dentro da capanga, dormia um trezoitão cano longo.

Os outros integrantes do sistema defensivo, entre eles o degas aqui, eram menos relevantes no esquema técnico-tático da equipe. Minha função, basicamente, era marcar algum meia e esticar a bola para a direita, por onde zanzava o Jorge Barnabé. O busílis da questão era precisamente esse: a velocidade do Jorge Barnabé.

Quando ele atirava a bola para frente, ninguém o alcançava. O Barnabé zunia rumo à linha de fundo, tzzzzimmm!, e cruzava para a área, ou entrava em diagonal e mandava um chute seco, rente ao capim ou a palmo e meio de altura, feito o Vento Sul.

Uma gazela de chuteiras, o Barnabé. Um perigo para as defesas. Então, nosso esquema era simples: todo mundo lá atrás, com duas missões: tomar a bola e lançá-la ao rapidinho do time.

Todo time tem que ter um rapidinho. Era isso que tinha o Inter. Nilmar era o rapidinho. Quando o Inter se fechava, com quatro zagueiros e três centromédios, o Inter vencia. Por quê? Porque era objetivo. Reto e liso.

Todo mundo lá atrás e o rapidinho na frente, esperando. Que Rolo Compressor, que nada: Huracán. O Inter jogava como o velho Huracán. De um jeito simples, mas prático. Como as melhores coisas da vida.

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