01 DE SETEMBRO DE 2020
NÍLSON SOUZA
Acordos de leniência
Decidi poupar-me um ano de vida. Sei que é uma atitude digna do Chapeleiro Maluco, mas tive que adotá-la meio de supetão quando um amigo querido me mandou mensagem desculpando-se por não vir me abraçar no dia do meu aniversário, pelas razões que todos conhecemos.
- Sem estresse! - respondi, acrescentando à resposta a ideia recém formada.
Neste ano estranho, não apenas deixei de celebrar a data como também decidi apagá-la do calendário da existência. Em consequência, este ano deixa de constar na minha biografia. Assim como muitos estudantes brasileiros perderão o ano letivo por falta de aulas presenciais e pelas dificuldades de acesso à tecnologia, também estou adiando a minha efeméride (argh) para depois da pandemia, talvez lá pela segunda metade de 2021.
Reconheço que se trata de uma decisão monocrática, a exemplo do que fazem alguns juízes, embriagados com o próprio poder de mudar o destino das outras pessoas. Pouco importa se, depois, a medida será revisada por uma corte superior - no meu caso específico de desacato à contagem convencional do tempo, possivelmente pelo STJF, Supremo Tribunal do Juízo Final.
- Por que você sonegou 2020 na sua declaração de vida? - perguntarão os inquisidores.
E eu, com o meu melhor sorriso amarelo, direi: - Reconheço o delito e estou pronto a repará-lo. Podem me mandar de volta que cumpro mais um ano.
Fantasia à parte, jamais nos esqueceremos deste ano que escancara todas as nossas fragilidades como seres humanos ao mesmo tempo em que nos oferece as condições para um acordo de leniência com o futuro: cuidados com a saúde, preservação efetiva do meio ambiente, abertura à diversidade, combate sem tréguas aos preconceitos, rejeição inequívoca ao autoritarismo e ao negacionismo, maior apreço pela educação, pela ciência e pela cultura, menos ganância e mais solidariedade.
As infrações a essas regras básicas de humanidade - já sabemos - nem chegam ao referido STJF. São julgadas em rito sumário na primeira instância de nossas breves e frágeis vidas.
NÍLSON SOUZA
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