segunda-feira, 23 de outubro de 2023


23 DE OUTUBRO DE 2023
CARPINEJAR

Não temo fantasmas

Se aparecesse um fantasma diante de mim, não ficaria assustado, não gritaria, não fugiria. Acenderia a luz e ofereceria um copo d?água. Diria para se acalmar, para respirar fundo, para falar sem pressa. Puxaria uma cadeira e o convidaria a se sentar para aliviar seu cansaço por atravessar tantas paredes.

Perguntaria o que aconteceu para surgir assim, sem avisar. Talvez estivesse procurando alguém e confundiu o endereço. Ou, na ânsia de atalhar, entrou na residência errada. Perguntaria se queria falar mesmo comigo, se existia um propósito claro em nosso encontro ou foi obra do acaso.

Com um toque carinhoso em seus ombros diáfanos, incentivaria a assombração a relatar os seus aborrecimentos, o motivo dos seus ganidos, o que vinha despertando seu tumulto interior, a ponto de não ter paz e vagar perdida como alma penada pelo mundo terreno.

Buscaria antes um casaco no armário. Fantasmas são sempre maltrapilhos, adoecendo de frio, com uma camisola branca e pés descalços. Todos fazem voto de pobreza.

Se surgisse arrastando correntes, eu chamaria um chaveiro e pagaria um extra pelo atendimento em domicílio. Prometeria rezar por ele. Para fantasmas, os únicos conselhos que funcionam são as orações. Dependendo do tamanho da sua culpa, encomendaria uma proteção para a minha mãe.

Não sofro de nenhum receio dos mortos (são inofensivos, amistosos, apegados), mas, por outro lado, morro de medo dos vivos. De quem é capaz de bombardear um hospital na Faixa de Gaza e matar cerca de 500 pessoas.

A guerra já é em si mesma um crime, mas destruir um abrigo com doentes e feridos, com crianças internadas, representa genocídio. Nem no inferno há tanta maldade. Temo a indiferença à vida, a matança indiscriminada e selvagem em nome de um ideal, de uma ideologia de extermínio.

Há um depoimento de um pai israelense que começa a gritar "Graças a Deus" quando descobre que sua filha de oito anos, desaparecida depois de um ataque do Hamas a um kibutz em Be?eri, em Israel, tinha sido encontrada morta.

A princípio, ninguém entendeu as suas palavras. Pareciam contradizer a dor paterna - o pior sofrimento do mundo é perder um filho -, pareciam não combinar com as suas lágrimas abundantes, seus olhos avermelhados de desespero.

Em entrevista à CNN norte-americana, o irlandês Thomas Hand explicou: - Achamos Emily. Ela está morta. E eu disse "Sim!", e sorri. Porque eu sabia que essa era a melhor notícia diante das possibilidades que eu conhecia. Ela estaria morta ou em Gaza. E, se você sabe alguma coisa sobre o que fazem com as pessoas em Gaza, é pior do que a morte.

Seu alívio, do mais profundo amor, era saber que ela não havia sido torturada pelo Hamas, que não morreu olhando nos olhos do terror, impotente e indefesa, apavorada a cada minuto, sendo abusada e avisada de cada privação e agressão.

Quando a morte é uma estranha bênção, nossa humanidade já é desumana.

CARPINEJAR

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