segunda-feira, 16 de outubro de 2023


16 DE OUTUBRO DE 2023
CLÁUDIA LAITANO

Ao pé da letra

E eis que daquele manancial de riquezas abundantes surge mais uma relíquia. Chegou há pouco às principais plataformas de streaming o podcast McCartney: A Life in Lyrics, versão sonora do best-seller publicado em 2021.

Lançado no Brasil pela editora gaúcha Belas Letras, o livro Paul: As Letras é baseado em uma série de conversas do ex-beatle com o poeta irlandês Paul Muldoon. Ao longo de cinco anos, os dois Pauls se encontraram para conversar sobre a inspiração, o contexto e o processo de criação de 154 músicas compostas antes, durante e depois dos Beatles. O podcast oferece aos ouvintes a chance de escutar algumas dessas conversas, divididas em duas temporadas de 12 episódios de pouco mais de 20 minutos - cada um deles esmiuçando uma canção. Já estão no ar Eleanor Rigby, Back in the U.S.S.R. e Let it Be. Novos episódios serão lançados todas as quartas-feiras.

Eleanor Rigby nasceu no mesmo ano que eu, 1966, no disco Revolver. Ao longo de quase 60 anos, gerações de ouvintes vêm mergulhando, em diferentes níveis de profundidade, na letra dessa canção estranha e melancólica, preenchendo as lacunas da narrativa com a própria imaginação. Alguns emprestando um rosto conhecido (uma tia, uma vizinha?) para a mulher solitária que juntava os grãos de arroz no casamento dos outros, outros inventando uma biografia inteira - família, amores platônicos, causa mortis. 

Essa legião de Eleanors espalhadas hoje pelo mundo tem uma matriz comum: uma senhora de Liverpool a quem o menino Paul costumava ajudar quando era escoteiro. Na hora de fazer os arranjos para a nova música dos Beatles, o produtor George Martin lembrou da trilha sonora do filme Psicose, composta por Bernard Herrmann alguns anos antes. Spoiler: depois de ouvir Paul contando essa história, fica quase impossível escutar a música sem lembrar da cena do chuveiro.

Eleanor Rigby com uma pitada de Hitchcock, Back in the U.S.S.R com ecos de Chuck Berry e Beach Boys, Let it Be evocando um Hamlet soterrado em uma memória de infância. O conjunto de referências e conexões que vão pipocando durante a conversa retira a pátina de previsibilidade de canções conhecidas. É como assistir a um filme antigo em uma cópia recém restaurada. Detalhes que passavam despercebidos saltam aos ouvidos, sutilezas de letra e melodia ganham novos significados.

Ao propor essa espécie de engenharia reversa de seu processo criativo, Paul McCartney acaba escrevendo a própria autobiografia. E parte dessas memórias, como a Eleanor Rigby que cada um inventou para si, são um pouco nossas também.

CLÁUDIA LAITANO

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