sábado, 28 de outubro de 2023


28 DE OUTUBRO DE 2023
MARTHA MEDEIROS

Concepção de vida

Poderia passar horas falando dos motivos que fazem eu reverenciar a obra cinematográfica de Woody Allen, mas tem uma declaração dele com a qual me identifico mais que tudo: "Adoraria fazer grandes filmes, desde que isso não atrapalhe minha reserva para o jantar". Óbvio que ele já fez grandes filmes, mas o conceito é perfeito: a dedicação ao trabalho não pode ser tão extrema a ponto de roubar os momentos de prazer junto à família e aos amigos, que é quando a gente relaxa e aproveita a vida.

Na primeira vez em que reproduzi essa sua frase, um leitor me mandou um e-mail dizendo que para Woody Allen era fácil dizer isso, pois ele tinha fama, dinheiro e não precisava ralar feito um miserável. É verdade. Em países desiguais, a maioria da população não tem escolha, precisa trabalhar 14 horas por dia para conseguir pagar as contas. Mas o ataque não deveria ser direcionado ao diretor de cinema, e sim ao sistema que impede que este conceito "carpe diem" seja universal.

Em recente postagem no Instagram, destaquei um trecho de uma crônica do meu novo livro que, de certa forma, dialoga com a frase do Woody Allen: "Em vez de focar em ter fortuna, que induz ao excesso de consumismo, mil vezes trabalhar menos, voltar para casa mais cedo e pedir uma pizza. Desculpe o provincianismo, sei que pode soar chocante". O post teve ótima repercussão, mas alguns me perguntaram se eu sabia quanto custava uma pizza, enquanto outros lembraram que comer também é consumismo. Foram reações avulsas, em que o conceito mais uma vez perdeu para a literalidade.

Quando o conceito não é percebido, resta o quê? O ranço. Que não transforma nada.

É por isso que um país que não lê é um país vulnerável. Porque se não exercitamos a interpretação de texto, o que sobra é uma visão restrita, ipsis litteris. A reserva para o jantar, de Woody Allen, significa ser dono do seu tempo, e não escravizado por ele. A pizza da frase que escrevi não significa pizza, mas simplicidade, trivialidade, domesticidade (aliás, essa frase foi pinçada da crônica em que saúdo o caráter de Ricardo Darín, ator argentino que, em uma entrevista, disse que não precisava se render aos papéis estereotipados que Hollywood lhe oferecia, pois já tomava dois banhos quentes por dia e era cumprimentado nas ruas, para que desejar mais?)

Repito: é um conceito, não é uma declaração ao pé da letra. Dinheiro é muito bom. Compra viagens, vinhos, conforto. A questão é o preço que se paga por ele: o custo pessoal não pode ser excessivo. Não vale a pena dar em troca o nosso descanso e nossa disponibilidade para os afetos.

Vale para Allen, para Darín e para todos que se recusam a virar reféns desta sociedade que exige uma performance doentia e cruel. Nossa paz, em primeiro lugar.

MARTHA MEDEIROS

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