quinta-feira, 12 de outubro de 2023


A arca e as cobras

Não sou desses que vivem pensando na Roma Antiga, como revelam os vídeos do TikTok, mas confesso que nas últimas semanas tenho sido assombrado pela história bíblica de Noé. Acho que a culpa é do gaiato anônimo que publicou um meme imbatível naqueles dias de fecha-e-abre de comportas no Muro da Mauá. O sujeito colocou uma imagem da célebre Arca ancorada na Rodoviária de Porto Alegre, com o anúncio do horário de partida.

Se partiu, ninguém sabe, ninguém viu, mas o certo é que desapareceu no dia seguinte, como tudo o que navega pelos mares revoltos da internet. Só que eu não parei mais de pensar no assunto. Noé é um dos personagens mais impressionantes da literatura, seja ela sagrada ou profana.

Vi aquele filme com Russell Crowe que provocou intermináveis controvérsias religiosas devido às licenças poéticas do diretor ao adaptar o Gênesis à imagem e semelhança de seu ateísmo. Faz tempo, mas ainda me lembro bem de uma cena emblemática em que a mulher de Noé acompanha a entrada dos animais no barco e se espanta com o casal de cobras que desliza na direção da rampa.

- Elas também? - pergunta ao marido.

Essa bronca é atávica. Não convidem mulheres e cobras para sentar na mesma mesa. Mas voltando à companheira de Noé, a objeção velada foi sua única manifestação de contrariedade até aquele momento, embora o marido tenha feito coisas que nenhuma mulher aturaria. Imagine em tempos de seca o sujeito chegar em casa e avisar a esposa que vai construir um barco enorme, por ordem divina. No mínimo, ela mandaria interná-lo. Mas dona Noé (que, segundo alguns historiadores, se chamava Noema) aceitou a situação, ajudou no trabalho de marcenaria e, depois, ainda passou 190 dias enfurnada na arca, alimentando animais e limpando seus excrementos. E o pior: na companhia das serpentes.

Cada vez que saio para caminhar na beira do Guaíba, que mesmo nos dias ensolarados continua lambendo as calçadas de Ipanema e inundando ruas e pátios, volto a pensar na saga de Noé. E me ocorre uma ideia verdadeiramente revolucionária: como o tal El Niño resolveu implicar com o Rio Grande do Sul, talvez a gente devesse ressuscitar aqueles lanchões de Garibaldi e deixá-los ancorados lá pelo Cais Embarcadero. Sei que não caberia muita gente e que talvez nem desse para viajar até Laguna. Mas bastaria acrescentar um casal de cobras que certamente renderia um vídeo viralizante para o TikTok.

NÍLSON SOUZA 

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