quinta-feira, 12 de janeiro de 2017



12 de janeiro de 2017 | N° 18739 
DAVID COIMBRA

Na tarde quente, o vendedor grita

Antigamente, dizia-se que laranja “de manhã é ouro, de tarde é prata, de noite mata”. Escrever “antigamente” é coisa de gente antiga, sei. Mas gosto. Dá um ar nostálgico ao texto. O sujeito ouve um antigamente e já encomprida o olhar.

Pois antigamente dizia-se isso da laranja. Por que seria? Tenho cá que todos esses velhos ditados e expressões foram criados a partir de fatos concretos. Claro que alguns ainda carecem de investigação aprofundada.

Por exemplo: por que os pintos ficam felizes quando estão no lixo? Isso é perturbador. Porcos eu entenderia, mas pintos? Minha avó tinha galinheiro, lá havia galinhas poedeiras, um galo orgulhoso e vários pintinhos. Não lembro de um que chafurdasse na imundície, feito um deputado.

Outra: “Apanhar como boi ladrão”. Então, bois roubam? O que poderiam roubar? Ou será que esse é um problema exclusivamente do Brasil, onde até bois são corruptos?

Pintos e bois. Mistérios zoológicos que pretendo resolver mais tarde. Agora me ocuparei dos botânicos. A que se deve a má fama noturna da laranja?

Bem. Meu avô, que era antigo como todos os avós, contava uma história ocorrida com um amigo dele. Esse homem, quando jovem, foi acometido de uma doença que parecia incurável. Sentia dores horrendas nas entranhas, os médicos não conseguiam descobrir as causas do problema ou sua solução. Ele já não saía mais da cama, entrevado e desenganado. Seus familiares perderam as esperanças, chegaram a chamar um sacerdote para lhe ministrar a extrema-unção.

Foi aí que um estranho bateu à porta. Era um homem sério, que não disse nem bom dia e nem se apresentou. Apenas comunicou: – Sei que nesta casa tem uma pessoa que está à morte. Posso salvá-la.

Como os parentes estavam desesperados, deixaram o homem entrar e perguntaram o que teria de ser feito. Ele disse que precisava ficar alguns momentos a sós com o moribundo, em seu quarto. Nada mais. Eles se entreolharam, desconfiados, mas concluíram que não custava arriscar. Permitiram que o desconhecido se trancasse no quarto com o doente. Após alguns minutos de ansiedade, ele abriu a porta. E disse:

– O rapaz está dormindo. Quando acordar, se sentirá melhor. Amanhã estará curado. Agora vou embora. Todos perguntaram o nome do homem, queriam saber quem era. Ele respondeu com voz decidida:

– Isso não interessa – e já ia saindo, já estava com a mão na maçaneta, mas, antes de passar pela porta, advertiu: – Só tem uma coisa: ele nunca mais vai poder comer laranja. Nunca mais.

E se foi.

O rapaz, de fato, se curou rapidamente. Desenvolveu-se forte e sadio, arrumou bom emprego, casou-se com uma mulher que reclamava pouco. Teve filhos. Vivia feliz em sua casinha com cerca branca, até uma calorenta tarde de verão em que viu um vendedor de laranjas passar por sua rua.

– Laranjas fresquinhas! – apregoava o homem. – Laranjas refrescantes! As melhores laranjas que você já provou!

Fazia seus anúncios com tamanha convicção, que nosso amigo salivou de desejo. Desde que havia se curado daquela obscura doença, muitos anos atrás, jamais provara uma única laranja ou tomara um só copo de laranjada. Observava os outros seres humanos se deliciando com laranjas amarelíssimas, de aparência suculenta e nunca ousara comer um gomo. Raciocinou: não seria aquilo uma bobagem? Já havia consultado médicos e agricultores. Todos diziam que laranja não faz mal. Só podia ser besteira. Coisa de gente antiga. Por que se privar de uma fruta tão maravilhosa?

Comprou uma laranja. Descascou-a. Admirou-a, assim nua, por alguns segundos.

Arrancou um gomo. Levou-o aos dentes. Comeu. Morreu na hora, fulminado, sem dizer um ai.

Moral da história: comer fruto proibido sempre dá problema.

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