sábado, 21 de janeiro de 2017



21 de janeiro de 2017 | N° 18748 
LYA LUFT

Os bens ignorados

Coisas que a gente tem à disposição mas ignora, e ainda por cima se lamenta. Exemplo: a possibilidade de afetos e projetos, lema que repito em artigos e palestras há anos e anos. Do que a gente precisa para sentir-se bem na própria pele, que é um certo sentido de “felicidade”? E eu dizia e digo: afetos e projetos.

Certa vez, falando para um público bastante grande, na primeira fila levantou-se uma senhora de uns oitenta anos, olhos alertas, e, quase com dedo em riste, me disse como se eu fosse culpada: “Como a senhora quer que eu tenha afetos? Não tive filhos, sou viúva, quase todas as minhas amigas morreram. Como posso ter afetos? Um cachorro, um gato?”. E acrescentou já bem zangada: “E projetos? Pior ainda. Tenho mais de oitenta anos. Caminho com certa dificuldade (apontou a bengala) e já vivi muito. Que projeto posso ter?”.

Vou lhe dizer aquilo em que acredito, respondi, e que sei por experiência própria. Não funciona igual para todo mundo, mas em geral dá certo, dentro da realidade de cada um. Afeto: além de um bichinho de estimação, que se a senhora não tiver é boa ideia, não há vizinhos em seu edifício a quem cumprimentar com simpatia no elevador, puxar uma conversinha, inventar aquele velho pedido de uma xícara de açúcar para iniciar uma relação? No mercado, na quitanda, mesmo que não sejam amizades, a senhora não tenta conversar? Ligar para a amiga doente, ligar para um sobrinho e convidar para um café, coisas desse tipo? O mundo em geral não vem até a gente: nós temos de buscar, com tranquilidade e coração aberto. Porque desespero, como no tempo dos namoros, espanta os outros.

Projetos... bem, o primeiro é combater com unhas e dentes a amargura que ronda tantas vezes. Não cobrar nada, nem da vida, nem dos outros. A pessoa pode não viajar mais para a Europa, nem se interessar por uma praia no Caribe ou um diploma de Direito (e por que não?), mas pode frequentar um curso interessante, um ateliê de pintura. Ir a um cinema. Visitar uma livraria é um bom passeio sempre. Não imaginar projetos grandiosos, mas, até, como eu certa vez fiz, mudar de lugar sua poltrona para enxergar, em vez da parede do vizinho, um pôr do sol. Fazer trabalho voluntário pode ser extraordinariamente renovador: ser útil, em lugar de se sentir vítima. 

(Ela começava a me olhar com simpatia.) Além do mais, é talvez tempo de apreciar uma coisa que quando mais jovem a senhora não tinha, eu não tinha: ócio. Curtir não ter tantos horários, agitação, obrigações. Ficar quieta com suas belas memórias (feliz de ter tido tudo aquilo), um trabalho manual, um bom livro, sabendo que não vai ter de levantar correndo daqui a uns minutos para atender alguém. Nós esquecemos como o ócio, sem depressão mas bem entendido, pode ser renovador, até curativo. Temos o vício da atividade e do trabalho, lazer sendo irmão da preguiça. Aliás, por que alguma vez não se permitir ser preguiçoso?

No fim da palestra, hora dos autógrafos, ela se aproximou de mim, risonha, me abraçou, me chamou de “filha” e disse: “É, penso que de vez em quando eu sou meio chata...”. Àquela hora éramos velhas amigas. E eu me achei o máximo. O que às vezes é bem bom.

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