28 de janeiro de 2017 | N° 18754
PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO
O ABANDONO
O Ezequiel veio da emergência com o diagnóstico de pneumotórax, o que eliminou todas as burocracias e os impeditivos para a admissão imediata no hospital. Tinha o olhar triste e os ombros pesados de abandono.
Quando perguntado o seu sobrenome, houve o primeiro desencontro: o Rosling anunciado em um quase sussurro não coincidia com o documento amassado que carregava na carteira envolto num plástico sujo. Mas ninguém se importou com isso, porque, afinal, era só mais um brasileiro pobre em busca desesperada por um pouco de ar, e a prioridade era tentar expandir logo o pulmão direito e recuperar o fôlego.
Os exames que se seguiram foram uma sucessão de desgraças. O pulmão não reexpandia, encarcerado que estava por um grande tumor, obra de um tabagismo de mais de 45 anos, e as tomografias detectaram implantes da doença no cérebro, no fígado e nas costelas. Menos de duas semanas depois, o Ezequiel morreu na enfermaria, rodeado por três desconhecidos cuja única afinidade era a miséria, no seu caso, agravada pelo abandono.
Ninguém lembrava dele ter recebido alguma visita nesses vários dias em que os parceiros de quarto foram sendo renovados. Tampouco havia no prontuário alguma referência à família, e assim, a causa da solidão, sempre de construção rude e bilateral, no caso dele será arquivada como presumida.
Quatro dias depois da morte, a assistente social comentou que o cadáver continuava no necrotério e que nenhum familiar tinha respondido aos apelos para o resgate do corpo. Uma das muitas histórias de abandono que ocorrem com deprimente frequência nessa população que, na descrição dolorosamente verdadeira de JG de Araújo Jorge, morre tanto todos os dias, que quando finalmente chega o dia da morte, já não tem mais o que morrer. Não sei que fim deram ao que sobrou do Ezequiel. A morte dos zumbis não provoca comoção.
Na virada do ano, com o deslocamento maciço da população em direção ao litoral, as rádios colocam repórteres em pontos estratégicos para orientar os motoristas sobre como enfrentar a sobrecarga nas nossas estradas, onde é comum o relato de congestionamentos gigantescos, muitas vezes agravados pela insanidade dos apressados sem causa. A contagem do número de veículos por minuto passando por pontos determinados, a dimensão em quilômetros de retenção de veículos e a sugestão de horários mais propícios para o deslocamento em ambos os sentidos são de grande utilidade pública.
No meio desse noticiário, chamou a atenção uma advertência incomum. Os motoristas deviam ter redobrada atenção numa curva fechada para a esquerda, no quilômetro 5 da Estrada do Mar, porque havia um animal morto na pista da direita. Um cão de pelagem escura havia sido atropelado na noite anterior, e a remoção do corpo ainda aguardava a iniciativa das autoridades competentes.
E então, o curioso da notícia, o cadáver tinha companhia: um cão branco, da mesma linhagem vira-lata, mantinha-se estendido ao lado do corpo, com a cabeça entre as patas dianteiras, velando o companheiro. As muitas tentativas dos passantes de removê-lo do local tinham fracassado.
Como se vê, nem todas as espécies animais abandonam seus parceiros.
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