terça-feira, 10 de janeiro de 2017



10 de janeiro de 2017 | N° 18737 
DAVID COIMBRA

As cabeças cortadas de Manaus

Recebi vídeos e fotos da chacina cometida no presídio de Manaus. Não vi tudo. Era insuportável. Decapitações, mutilações, cenas mais repugnantes do que qualquer um desses filmes de terror de péssimo gosto que volta e meia são lançados para atrair adolescentes.

Nenhum brasileiro precisa esticar o olhar até a Síria para se horrorizar com o Estado Islâmico. Temos nossos monstros de fabricação caseira.

Não vou descrever a selvageria que vi, evidentemente, mas “selvageria” é palavra branda para qualificar o que foi cometido no Amazonas. “Selvageria” vem de selvagem, o que é da selva, silva, silvícola. O Amazonas é conhecido no mundo inteiro por suas selvas, mas em nenhuma selva do mundo, nenhum silvícola, nenhum bicho, nenhum ser vivo seria capaz de fazer o que fizeram aqueles homens, a não ser que estivesse definitivamente degenerado por alguma doença terrível.

É o caso. Aqueles homens, assim como outros tantos brasileiros que vivem em condições semelhantes, são doentes incuráveis.

Violência existe em toda parte, sempre existiu, mas a crueldade parnasiana, a crueldade pela crueldade é mais do que preocupante: é assustadora. E, se você está pensando que os homens que sofreram aquelas barbaridades eram também eles criminosos, lembre-se de que os assassinos não ficarão presos para sempre e que o viveiro onde foram criados continua produzindo outros iguais a eles, homens que não respeitam crianças, grávidas, velhos ou pais de família. Homens sem compaixão.

Como chegamos a esse ponto? Como a sociedade brasileira pariu essas bestas-feras?

Há que se refletir sobre isso. E agir rápido.

A primeira característica do problema é sua amplitude nacional. Os dramas da segurança pública são semelhantes em todos os Estados do Brasil, do Rio Grande ao Acre. Diz muito sobre o país. Diz muito sobre a grande distorção da República brasileira.

Entenda: a segurança pública, pela Constituição de 1988, é uma atribuição dos Estados. Aqui, nos Estados Unidos, também é assim. Mais até: a polícia que mais atua junto ao cidadão é a municipal. Então, cada cidade lida com o problema de acordo com suas concepções e suas condições.

Exemplos: Boston é mais ou menos do mesmo tamanho de Porto Alegre, tem cerca de 1,3 milhão de habitantes. As autoridades estão preocupadas, porque em 2016 houve aumento do número de homicídios: 46 no total.

Chicago tem o dobro de moradores: 2,7 milhões. Mas, em 2016, a cidade apresentou um número de homicídios 16 vezes maior: 762.

E Nova York, que tem 8,5 milhões de habitantes, teve 334 homicídios no mesmo ano.

Tantas diferenças são compreensíveis não apenas pela peculiaridade de cada lugar, mas porque cada lugar pode lidar com suas peculiaridades contando com uma arrecadação e um modo de governo peculiar.

No Brasil, o governo federal assumiu a atribuição de concentrar a arrecadação de impostos e distribuí-los de acordo com o que considera prioritário. A ideia seria corrigir injustiças. Na verdade, gera novas injustiças, incrementa a burocracia e estimula a corrupção.

São Paulo é um dos poucos Estados do Brasil em que a criminalidade cai, ao invés de aumentar. Porque São Paulo arrecada tanto, que sobrevive até à ganância do governo federal.

O governo federal imperial e paternalista está no centro, de fato: no centro de quase todos os problemas brasileiros.

Mais do que reforma política, mais do que reforma na segurança, mais do que qualquer reforma, o Brasil precisa reformar seu pacto federativo e sua distribuição tributária. Quanto mais poder houver em Brasília, mais cabeças serão cortadas no Brasil.

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