26 de janeiro de 2017 | N° 18752O
PRAZER DAS PALAVRAS | Cláudio Moreno
Chofer
REVISADO PARA O ESTILO de hoje, poderíamos escolher entre choferes ou motoristas
Neste verão abrasador, dois estreantes vêm bater à nossa porta. Primeiro, um leitor que suponho imberbe (tem apenas treze anos) se enche de coragem e vem apresentar a sua dúvida: “Gosto de ler O Prazer das Palavras e resolvi fazer uma pergunta: por que dizem que um filme tem violência gratuita? Aqui não é sinônimo de grátis, não é?”. Não, meu jovem, não é. Se você acompanha o que escrevo aqui, já me viu várias vezes explicar que as palavras são feitas de matéria elástica, o que permite que elas se expandam para abrigar novos significados. Gratuito vem do Latim gratuitus, “dado ou recebido de graça”, sentido que mantém até hoje (entrada gratuita).
Como se trata, porém, de algo que se recebe sem qualquer contrapartida, a partir do século 19 o vocábulo passou a ser usado também para designar qualquer coisa feita “sem motivo, sem justificativa” – coisa, aliás, que também ocorreu com a locução de graça (como em “ele a agrediu de graça”). Já se encontram exemplos disso em Machado de Assis, nosso gênio literário (se você não concorda, um dia vai concordar): “fatos que sou obrigado a enfileirar aqui para não deixar este homem sob a suspeita de caluniador gratuito” ou “Deram ao pobre velho um suplício, além de coletivo, gratuito”. José do Patrocínio, uma das figuras mais destacadas do Abolicionismo, escreve, também no fim do século, “a Guarda Negra... é gratuitamente responsabilizada pela agressão ao sr. Quintino Bocaiúva”.
De outra parte, a leitora Ivonette, de Palotina, no Paraná, tem dúvidas completamente diversas: “É verdade, professor, que chofer (de automóvel) vem do Inglês? Não é melhor usar motorista?”. A resposta vai ser não para a primeira, sim para a segunda.
Nosso chofer é o aportuguesamento do Francês chauffeur – literalmente, o trabalhador da ferrovia que cuidava da caldeira (chauffage) das antigas locomotivas. Seria algo assim como o nosso foguista ou maquinista. Com o advento do automóvel, os franceses aproveitaram o termo para designar aquele que conduzia o novo veículo – até porque os primeiros modelos eram movidos a vapor e, portanto, dotados de caldeira.
Os primeiros automóveis do Brasil vieram da França, trazidos pelo irmão de Santos Dumont e – ora, que coincidência! – pelo mesmo José do Patrocínio acima mencionado (tinha importado um Serpollet a vapor, que seu amigo Olavo Bilac destruiu, ao se chocar com uma dessas rijas árvores do trópico). Esta preferência inicial por modelos daquele país explica o fato de usarmos até hoje a nomenclatura de origem francesa e não de origem anglo-saxônica. Daí capô, marcha à ré, embreagem, derrapar, giclê, chassi, entre tantos outros.
Em 1921, a forma francesa ainda estava bem viva, como podemos ver neste exemplo de Lima Barreto: “Se o progresso traz miséria, em compensação faz nascer outras profissões. Veja você só os manicures, os pedicures, os engraxates, os motorneiros, os chauffeurs, os massagistas, etc.”. Revisado para o estilo de hoje, poderíamos escolher entre choferes (forma aportuguesada) ou motoristas, mas a maioria dos brasileiros, incluindo eu e você, optaria pela segunda.
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