sábado, 28 de janeiro de 2017




28 de janeiro de 2017 | N° 18754 
DAVID COIMBRA

A arte de tirar a sesta

Os espanhóis fazem a sesta. E fazem sem remorso. Das duas às cinco da tarde, boa parte do país simplesmente dorme.

É admirável. Sempre quis cultivar o hábito da sesta, mas como lidar com o sentimento de culpa? Acho que foi o maldito sistema capitalista que inoculou na minha mente a irreprimível sensação de que a hora depois do almoço é para produzir. Produção, produção, produção. Bens de consumo, é isso que vocês querem, não é? A mais valia. O negócio de vocês é a mais valia!

Por causa dessa ardilosa filosofia calvinista, passei a vida reprimindo minha vontade de fazer a sesta. Mesmo assim, o corpo reivindica. O corpo não está nem aí para a ética burguesa.

Houve uma época, lá pelos 16 anos de idade, em que trabalhei no departamento de cobrança da J.H. Santos, uma grande loja de departamentos que havia em Porto Alegre. Eu não cobrava nada de ninguém, meu serviço era interno, de escritório.

A sede ficava ali na Otávio Rocha, em frente à Renner. Começava o trabalho bem cedo, pouco depois das sete da madrugada. Tinha de chegar, bater o ponto no oitavo andar e depois descer para a minha sala. Se não batesse o ponto no horário, descontavam o dia. Quer dizer: trabalhava de graça.

Era terrível, porque morava lá no IAPI. Então, precisava acordar cedo, praticamente ainda noite, uma dor. Resultado: depois do almoço, dava-me um sono, mas um SONO. Era invencível. Não havia nada que resolvesse. Tomava café e dormia com a xícara na mão, ia lavar o rosto e dormia no banheiro.

Eles me davam uns formulários para preencher, uma folha de papel com uns quadradinhos. Eu devia escrever uns números naqueles quadradinhos. Cristo! Os quadradinhos e os números começavam a se embolar na minha visão, as minhas pálpebras pesavam e a cabeça começava a se transformar numa bola de boliche. Estava quase afundando o queixo no peito e vinha o chefe de lá e desferia o maior tapa na mesa, PLÁ!

– Acorda, rapaz!

Eu levava o maior susto, pedia desculpas e seguia preenchendo os quadradinhos.

Lembro que, na época, li uma reportagem sobre a tradição da sesta na Espanha. Contava que muitas empresas mantinham caminhas aconchegantes em uma sala escura para os funcionários descansarem depois do almoço. Suspirei. A velha e boa Espanha.

O general Geisel fazia a sesta. Depois do almoço, ele subia para seus aposentos particulares no Alvorada, tirava o terno e a gravata, entrava em um pijama e dormia por exatos 30 minutos, ao cabo dos quais se levantava, vestia-se de presidente e ia despachar.

Pelé, no intervalo dos jogos, estendia-se no banco duro do vestiário e cochilava por 15 minutos. Em seguida, recomposto, voltava a campo e marcava mais dois gols.

E Churchill, que era de dormir pouco à noite, mesmo durante os ardores da II Guerra Mundial parava tudo após o almoço, repousava por meia hora e retornava à lida de charuto empinado, disposto a dizimar nazistas.

Já o meu avô, o sapateiro Walter, reservava 15 minutos para si mesmo depois da uma da tarde. Ele fechava a sapataria e ia para os fundos. Apagava as luzes, recostava-se em uma espreguiçadeira, ligava o rádio no Sala de Redação e adormecia ouvindo o Foguinho discutir com o Cid.

Pensando em tudo isso, convenci a mim mesmo de que devia vencer meus preconceitos e tentar praticar a sesta. Afinal, tenho repetido meus 16 anos e acordo para trabalhar quando ainda é noite.

Certo.

No primeiro dia, interrompi o texto bem na palavra “corajosamente”, tomei de uma colcha macia como uma carícia de mãe e fui para o quarto. Fechei os olhos. Senti o torpor dominar meu corpo. Afrouxei a resistência. Mas, depois de cinco minutos, sentei na cama gritando:

– PRODUÇÃO! PRODUÇÃO!

Aqueles cinco minutos me fizeram mal e passei o resto do dia me sentindo estranho.

Não repeti a experiência durante toda a semana, mas, dias atrás, atravessei a manhã escrevendo e preparando um feijão com linguiça, temperado apenas com alho e sal. Imodestamente, afirmo que produzi um caldo cremoso, com sabor de comida da avó. Em 20 minutos, fiz um arroz soltinho, aliás ótimo arroz, vindo da Tailândia. Cortei um tomate em fatias da espessura de uma moeda de um real e temperei com sal, limão e azeite de oliva. Acompanhei o repasto de uma, uma única taça de tinto da Califórnia. Saí da mesa suspirando, levando no rosto meio sorriso e meio olhar.

Então, sem nada premeditar, sem planejamento e sem solenidade, me estiquei no sofá da sala e, em um minuto, adormeci feito um gato no sol. Depois de um quarto de hora, despertei, sentindo-me muito, muito bem. Sentindo-me um espanhol. Voltei para o computador sabendo-me renovado. Olhei para a tela. Ataquei o texto, murmurando suavemente:

– Produção... Produção...

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